Depoimento | Fabia Pierangeli

30 de janeiro de 2012 0 Por Gilberto Araujo
Fabia Pierangeli
O povo invisível que vive no pé da montanha | 20 de janeiro de 2012Fazia tempo que ouvia falar de um povo que vivia no pé de uma montanha, próxima da montanha onde vivo. Diziam que era um povo que vive no Brasil há milênios e que já foi gigante, mas que com o passar dos anos foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, diminuindo… Eles ainda existem, espalhados Brasil afora, nos pés de algumas montanhas, mas poucas são as pessoas que conseguem enxergá-los. Tentei procurar informações a respeito deles na internet, mas achei muito pouca. Tentei perguntar pra pessoas mais velhas, que moram há mais tempo que eu nessa montanha que hoje habito e as respostas foram as mais diversas: “Ixi… eles não existem mais não.” “Existiram há muito tempo, mas hoje em dia, só na imaginação das pessoas.” “É um povo que preza muito a natureza.” “Tem gente que diz que já viu, mas eu não acredito nisso não.” “Existem uns poucos espalhados por aí, mas quase nunca são vistos.” “Estão quase desaparecendo porque são muito preguiçosos.” “Existir até existe, mas logo acaba. Esse povo não gosta de trabalhar não, quer tudo na mão”. “Se você caminhar uns 30 km na direção sudoeste e olhar fixamente pra sua esquerda, pode ser que você consiga enxergar.” “Eles vivem todos pelados.” “Quase ninguém enxerga eles porque eles tem o poder de se camuflar com a terra.” Todas essas informações e “diz-que-me-disse” foram me deixando confusa e muita curiosa. Quanto mais eu ouvia a respeito deles, mais vontade de caminhar rumo ao sudoeste eu sentia. Ensaiei, ensaiei, calculei – se uma pessoa anda mais ou menos 6 km por hora, se eu caminhar bem, chego lá em umas 5h – olhei a previsão do tempo, fiz uma lista de coisas que devia levar pra essa viagem, tomei coragem e defini o dia. Comentei com a minha mãe e ela me perguntou porque é que eu queria ir atrás desse povo, que era pra eu pensar bem e que se eu realmente decidisse ir, pra tomar cuidado, pois ela tinha ouvido dizer que mesmo tendo diminuído muito eles ainda conseguiam aprisionar pessoas como nós pra escravizar ou pra comer. Senti medo, mas respirei fundo e disse pra ela que eu iria, que eu sentia que eu precisava chegar nesse povo e tentar enxergá-los, que eu queria conhecê-los pra tirar minhas próprias conclusões. No dia marcado, levantei junto com o sol, tomei um café da manhã reforçado, peguei minha mochila e parti. Caminhei, caminhei, caminhei e quando cheguei no pé da tal montanha, não consegui enxergar nada. Rodiei ela toda umas duas vezes. Cansada e decepcionada resolvi sentar embaixo de uma árvore pra descansar e voltar pra trás. O sol estava quente. O dia muito iluminado. Sentei, abri minha mochila, bebi um pouco de água e fechei os olhos. Nesse momento ouvi uma pulsação distante, uma pulsação externa que batia no mesmo ritmo do meu coração. Meu coração acelerou e quanto mais eu me concentrava no som, mais forte ele pulsava. Tentei identificar, ainda de olhos fechados, a direção que o som vinha e quando identifiquei, abri os olhos, olhei fixamente pra direção do som e como num sonho, foi aparecendo na minha frente uma vilinha tamanho miniatura, parecia de brinquedo. Meu coração batia cada vez mais forte e o som da pulsação também tinha aumentado e se juntado a outros sons, transformando em melodia com chocalhos, instrumentos de cordas, de sopro e vozes que cantavam palavras que eu não entendia. Tomei coragem, levantei e caminhei em direção aquilo que via. A cada passo a vilinha ia aumentando de tamanho e quando cheguei bem perto, ela já estava imensa. Respirei fundo e entrei, aquela música me atraia. O tempo suspendeu. Ruas de terra vermelha me guiavam. Casas de madeira margeavam as ruas e no centro da vila uma casa maior, com duas pequenas portas de entrada de onde saia muita fumaça. Uma das portas estava aberta. Lentamente me aproximei, ainda com receio, espiei. Tinha muita gente lá, as pessoas cantavam, dançavam, fumavam cachimbo, bebiam chimarrão, comiam. Homens e mulheres, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Todos festejavam. Entrei e quando dei por mim, aquela música já me fazia dançar. Dancei e quando dei por mim estava bebendo chimarrão. Bebi e quando dei por mim tinha na mão um pedaço de pão. Comi e quando dei por mim pitava a fumaça de um cachimbo diferente e bonito. Pitei e dancei, comi de novo, bebi, cantei e quando dei por mim, mesmo sem nunca ter ouvido aquela língua eu já entendia tudo o que eles diziam e eles diziam coisas que eu sempre quis dizer. Senti uma alegria que nunca tinha sentido antes. Mesmo sem nunca ter visto aquelas pessoas, parecia que os conhecia desde sempre. Nos olhávamos e nos reconhecíamos. O dia passou, a noite passou e só me lembrei que tinha que voltar pra casa quando o dia amanhecia novamente. Não queria voltar. Queria continuar ali, dançando, cantando, compartilhando. Pensei em pedir pra ficar mas no mesmo instante que pensei um senhor colocou as mãos no meu ombro. Eu virei e ele me disse olhando nos meus olhos, como se pudesse enxergar a minha alma: “Está na hora de voltar pra sua casa”. Senti vontade de chorar. Ele colocou uma das mãos na minha cabeça, com a outra, pitou seu cachimbo e me defumou. Senti vontade de abraçá-lo e ainda olhando nos meus olhos ele completou: “Você pode voltar sempre que quiser, sempre que ouvir o chamado”. Ele sorriu. Eu retribui. Mais uma vez respirei fundo e caminhei em direção a porta. Olhei pra trás. Eles ainda cantavam, dançavam e eram felizes. De novo senti vontade de chorar, mas agora era vontade de chorar de alegria. Eu ia, mas podia voltar. Voltei pra minha casa e de tempos em tempos, sinto meu coração bater forte, no mesmo ritmo daquela música que conheci naquele dia. Quando sinto isso, sei que é o chamado. Volto pra lá e me fortaleço, dançando, cantando e sendo feliz.