Depoimento | Fabia Pierangeli
31 de janeiro de 2012Sim, aquele índio que mora numa oca no meio da floresta, fala tupi, vive da caça, do plantio e da pesca, acredita em Tupã, tem um filho curumim, anda pelado e pinta o corpo, não existe, é um estereótipo.
E pra continuarmos essa conversa e acabar de vez com esse estereótipo, apelo pro dicionário… Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, índio é: Elemento químico metálico (símbolo In), de número atómico 49 = ÍNDIUM. E indígena: 1. Que ou aquele que é natural da região em que habita. = ABORÍGENE = AUTÓCTONE, NATIVO; 2. Que ou quem pertence a um povo que habitava originalmente um local ou uma região antes da chegada dos europeus = ABORÍGENE; 3. Natural de um país ou localidade.
Portanto, a partir de agora, continuo esse texto me referindo aos povos indígenas brasileiros. Segundo dados do IBGE, atualmente existem em nosso país mais de 200 povos indígenas, que falam mais de 180 línguas diferentes e vivem de forma completamente diferente um do outro, espalhados por todo o Brasil. A maior concentração desses povos está nas regiões Norte e Nordeste, mas eles também vivem nas outras regiões, em aldeias ou nas cidades.
Por incrível que pareça, na cidade de São Paulo, grande centro econômico do nosso país, existem 3 terras indígenas e uma delas fica no bairro do Jaraguá, há menos de 30 km de Francisco Morato. Uma comunidade Guarani Mbya, com cerca de 600 pessoas, que resiste, com seus cultos e tradições em frente ao Parque Estadual do Jaraguá. Quem passa em frente às aldeias Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, dificilmente se dá conta de que ali se vive de um jeito diferente. A primeira vista é só mais uma comunidade pobre, amontoada dentro de uma pequena área com quase nenhuma infraestrutura, casas feitas com restos de madeira, banheiros coletivos, com suas crianças e cachorros a brincar na beira da Estrada Turística do Jaraguá. Porém, aqueles que se permitirem enxergar para além das aparências e adentrar os muros daquela comunidade, deixando pra fora tudo o que “aprendeu” até ali, pode se deparar com deliciosas descobertas.
Em outubro de 2011, pisei pela primeira vez na terra vermelha e sagrada que abriga aquele povo. De lá pra cá, toda vez que vou lá, aproximadamente uma vez por semana, por conta do projeto “Ara Pyau – contando histórias, trocando saberes”, do Teatro Girandolá e do qual faço parte; sinto-me presenteada por “Nhanderu Papa Tenonde” (Deus Pai Primeiro, dos Guarani). Para aqueles que sempre reproduziram a frase “Os índios de hoje em dia já estão todos aculturados”, se referindo aos povos indígenas brasileiros, não fazem ideia da grande besteira que estão dizendo. Sim, a maioria deles se veste como “Juruá” (não indígena), compra comida no supermercado, possui celular, câmera fotográfica, filmadora, TV, computador, navega na internet, tem perfil no facebook, fala português com certa facilidade, pega trem, ônibus e é bombardeada o tempo todo pelas mesmas bombas do sistema capitalista que atingem todos os seres humanos desse planeta, mas a despeito de tudo isso, a forma como lida com todas essas coisas, difere muito da forma como nós, “juruás”, lidamos.
As aldeias, Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, além de preservarem a língua e os rituais Guaranis, passados de geração em geração há séculos (e esse talvez seja o traço mais forte e marcante dessa comunidade), também encaram sua passagem por esse mundo de uma maneira bastante distinta da nossa. O povo Guarani é um povo muito espiritualizado e celebrativo, que canta e dança pra reverenciar seus ancestrais, pra espantar os maus espíritos e atrair os bons, pra conversar com Nhanderu, pra agradecer pelo pão de cada dia. Eles tem um “Xeramoi”, o grande avô, líder espiritual e a essência da aldeia, que nós conhecemos como pajé. Gostam da chuva, prezam pela vida em comunidade, pela sabedoria dos mais velhos, pela autonomia do outro, inclusive das crianças. Eles acreditam e buscam a “Terra sem males”. Eles acreditam que devem devolver pra natureza, tudo o que dela consomem, entendem que tudo está ligado e que tudo o que é vivo, faz parte de uma mesma família. O sol, a água, a terra, os animais, as estrelas, as árvores, o fogo e os homens, são todos parentes. Eles acreditam que a educação se dá por meio da observação e da vivência, que o ser humano aprende a medida que vê o outro fazendo e se arrisca a fazer também, através da tentativa, erro e acerto, cada um a seu tempo. (Qualquer semelhança com o filme Avatar, não deve ser mera coincidência).
Entrar numa “Tekoa” (aldeia), é adentrar um templo sagrado. Lá, o tempo é outro, bem diferente desse nosso tempo louco e corrido. Lá, existe espaço para a contemplação e celebração da vida, para o cultivo do sagrado, para a reflexão acerca da história brasileira e da formação de seu povo, para o exercício da identidade indígena, a despeito de toda a discriminação que esses povos enfrentam, diariamente e historicamente. Os povos indígenas brasileiros existem sim e são seres humanos, de carne e osso, como eu, você e seu vizinho. Eles não são meras ilustrações dos livros didáticos ou simples personagens dos romances brasileiros. Eles são nossos irmãos, brasileiros e guardadores do que existe de mais ancestral na nossa cultura, fazem parte dos povos originários da nossa nação e estão simplesmente esquecidos.
Eles já não tem mais espaço pra plantar, já não tem mais autorização pra caçar e precisam brigar judicialmente pra terem direito a um pedaço de terra. As demarcações de Terras Indígenas levam anos para serem legalizados e muitas vezes, depois de serem demarcadas e reconhecidas, tornam-se alvo da ganância de latifundiários que coíbem violentamente essas comunidades e tornam-se autores de assassinatos bárbaros, que raramente são punidos. Hoje, eles não tem direito a sequer um pedaço de terra onde, há muito tempo atrás, era tudo deles.
Então, neste próximo 19 de abril, não vamos comemorar o Dia do Índio, que sequer existe; mas antes refletir de modo muito verdadeiro e honesto sobre a importância e o legado de todos os povos originários do Brasil e que, além de tudo, deram nome a muitas coisas em nossa sociedade: de ruas e coisas a bairros e cidades. E, principalmente, você que, por algum motivo, vá preparar alguma comemoração, homenagem ou algo que o valha, fica o aviso: Cuidado para, mesmo com a melhor das intenções, não disseminar uma visão estereotipada e preconceituosa a respeito desses povos, desvalorizando uma cultura extremamente rica e diversificada. Quem sabe assim, como foi há muito tempo atrás possamos, de fato, dizer que todo dia é dia dos povos indígenas; os mais antigos e originais brasileiros.