Casa de hóspedes, de James Joyce
14 de junho de 2011Mr. Mooney era filha de um açougueiro, mulher decidida e capaz de tomar a seu cargo qualquer empresa.
Casara com o ajudante de seu pai e abrira um açougue perto de Spring Gardens. Mas logo que o sogro morreu, Mr. Mooney, o marido, começou a pintar o diabo. Bebia, roubava dinheiro da caixa e contraía dívidas. Era inútil correr em seu auxílio, porque dias mais tarde tornava a fazer os mesmos disparates. Altercava com a mulher em frente dos fregueses, comprava carne de má qualidade e, assim, ia arruinando o negócio. Uma noite correu atrás da mulher com um machado, obrigando-a a fugir e a pernoitar em casa de uns vizinhos.
Depois disso, começaram a viver cada um para o seu lado. Ela foi ter com o padre e conseguiu separar-se do marido, ficando com as crianças.
Ele, sem casa, sem comida e sem dinheiro, foi obrigado a transformar-se num dos homens do xerife. Tornou-se bêbado, sempre mal arrumado, de cara pálida, bigode branco e sobrancelhas igualmente brancas, por cima de uns olhos sempre úmidos e raiados de vermelho. Passava todo o dia sentado no quarto do bailio, esperando que o mandassem trabalhar. Mr. Mooney, que havia tirado o que ainda restava do seu dinheiro do açougue, instalara uma casa de hóspedes na rua Hardwicke, cheia de uma população flutuante constituída por turistas de Liverpool e da ilha de Man e, ocasionalmente, de artistas do music-hall. Os hóspedes permanentes eram escrivães da cidade. Mrs. Mooney governava a casa com firmeza e sabia quando conceder créditos. Todos os hóspedes jovens a conheciam como Madame.
Os hóspedes permanentes pagavam quinze shillings por semana, de pensão e aposentos (excluindo cerveja ou vinho, às refeições), possuíam os mesmos gostos e ocupações e, por essa razão, entendiam-se todos muito bem. Jack Mooney filho de Madame, que era escriturário de um agente de comissões em Fleet Street, tinha a reputação de ser um “caso sério”. Gostava de dizer obscenidades usadas pelos soldados, e recolhia-se usualmente de madrugada. Quando encontrava os amigos sempre tinha uma boa para contar. Também cantava canções cômicas. Nas noites de domingo havia freqüentemente reuniões na sala de visitas de Mrs. Mooney. Os artistas do music hall prestavam o seu concurso. Sheridan tocava polcas e valsas e fazia acompanhamentos. Polly Mooney, filha de Madame, cantava:
Sou uma travessa mocinha
Não é preciso envergonharem-se
Pois bem sabem que o sou.
Polly era uma moça esbelta de dezenove anos, de cabelo claro e macio e de olhos cinzento-esverdeados. A sua boca era pequena mas carnuda e tinha o hábito de olhar para cima quando falava com alguém. Mrs. Mooney mandara a filha aprender datilografia, mas como um “sheriff” pervertido costumava ir todos os dias procurá-la ao escritório, achou melhor tirá-la de lá e trazê-la para casa. Polly era muito alegre e tornava-se um chamariz para os rapazes; convinha tê-la em casa. Polly certamente flertava com os hóspedes, sob a severa vigilância da mãe, que sabia perfeitamente que eles só faziam aquilo para passar o tempo. Assim iam correndo as coisas até de Mrs. Mooney começou a acarinhar a idéia de mandar novamente a filha para o escritório, porque desconfiava que existia qualquer coisa entre ela e um dos hóspedes. Começou, então, a observá-los.
Polly sabia-se vigiada, mas o persistente silêncio da mãe não podia ser mal interpretado. Não tinha havido nenhum entendimento, nem tampouco cumplicidade entre mãe e filha; apesar de as pessoas da casa começarem a falar, Mrs. Mooney não intervinha; Polly começou a tornar-se um pouco estranha e o rapaz andava evidentemente perturbado. Por fim, quando achou que era oportuno, Mrs. Mooney interveio. Tratava de problemas de moral com a mesma facilidade com que um açougueiro trataria de um assunto de sua especialidade; para aquele caso já tomara uma solução.
Estava-se no verão. Uma alegre manhã de domingo prometendo calor, mas com leve aragem. Todas as janelas da casa de hóspedes estavam abertas e as cortinas de renda balouçavam ao sabor da brisa. O campanário da igreja de S. George enviava constantes chamados e os fiéis solitários ou em grupos, reconheciam-se quando atravessavam o largo, quer pela sua compostura, quer pelos pequenos volumes que levavam nas mãos enluvadas. O almoço terminara e a mesa estava coberta de pratos, onde se vislumbravam ainda restos de ovos e presunto. Mrs. Mooney, sentada numa cadeira de braços,observava a criada, enquanto esta levantava a mesa. Mandou-a guardar todos os restos de pão, que seriam utilizados quando se fizesse o pudim de terça feira. Depois da mesa estar limpa, do pão guardado e da manteiga e do açúcar fechados à chave, começou a reconstruir a entrevista que tivera na véspera à noite, com Polly. As coisas eram tal e qual ela suspeitara; fora franca nas suas perguntas e Polly tinha sido franca nas respostas. As duas sentiam-se acanhadas, é claro. Ela, por não desejar receber as novas de uma forma altiva ou por poder parecer conivente Polly não só porque quaisquer alusões dessa espécie a faziam ficar sempre assim, mas também para não dar a impressão de que compreendia a tolerância da mãe e lhe adivinhara as intenções.
Mrs. Mooney olhou instintivamente para o pequeno relógio que estava na chaminé, ao deixar de ouvir os sinos da igreja de S. Jorge. Passavam dezessete minutos das onze; tinha tempo mais que suficiente para falar com Mr. Doran e estar ao meio-dia na rua Marborough. Estava certa de que ganharia. Para começar, tinha todo o peso da opinião pública pelo seu lado; era uma mãe ultrajada. Deixara-o viver debaixo do seu teto, tomando-o por um homem honrado e ele simplesmente abusara da sua hospitalidade. Tinha já trinta e quatro ou trinta e cinco anos, de forma que não era possível desculpar-se com a juventude; a ignorância também não podia ser a sua desculpa, visto que era um homem já conhecedor do mundo. Ele havia simplesmente abusado da ignorância e da falta de experiência de Polly: isso era evidente. Tudo estava na reparação que estivesse disposto a prestar.
Tinha que haver uma reparação em tal caso. Tudo ficava bem para um homem, que poderia seguir a sua vida depois de haver desfrutado uns momentos de prazer, como se nada houvesse acontecido; mas a moça era obrigada a agüentar o golpe. Muitas mães ficariam satisfeitas de terminar negócios como aquele com uma boa soma de dinheiro, conhecia vários casos assim. Mas com ela o assunto era diferente. A única reparação para a sua filha seria o casamento.
Passou em revista todos os seus trunfos, antes de mandar a Mary dizer a Mr. Doran que desejava falar-lhe. Tinha certeza de que iria vencer. Ele parecia ser um rapaz sério. Se o caso tivesse acontecido com Mr. Sheridan, Mr. Meade ou Mr. Bautam, tudo seria muito mais difícil.
Mr. Doran não suportaria a publicidade.
Todos os hóspedes da casa sabiam alguma coisa do assunto; e alguns haviam chegado a inventar detalhes. Para mais, ele estava empregado há treze anos num escritório de vinhos, pertencente a um negociante extremamente católico, e a publicidade do caso podia significar a perda do emprego. Pelo contrário, se Mr. Doran concordasse, tudo poderia acabar bem. Ele sabia que Mr. Doran era um pouco avarento e suspeitava que tivesse as suas economias.
Quase meia hora! Levantou-se e olhou para o espelho. A expressão decidida do seu rosto satisfê-la e lembrou-se de algumas mães que conhecia, e que não conseguiam livrar-se das filhas.
Mr. Doran sentia-se inquieto naquela manhã de domingo. Já por duas vezes tentara barbear-se, mas as mãos tremiam tanto que tinha sido obrigado a desistir. Uma barba espessa de três dias cobria-lhe as maxilas, e de três em três minutos uma névoa embaciava-lhe os óculos, de modo que tinha que tirá-los para os limpar com o lenço. A lembrança de sua confissão da noite passada era uma coisa dolorosa para ele; o padre arrancara-lhe todos os detalhes ridículos do caso, e no fim, falara-lhe de tal maneira do seu pecado, q quase ficara agradecido por consentir numa reparação. O mal estava feito. O que poderia agora fazer senão casar ou fugir? O caso seria certamente falado e chegaria aos ouvidos do seu patrão. Dublin é uma cidade pequena onde todos sabem o que se passa com os outros. Sentia um grande calor na garganta quando, na sua excitada imaginação, ouvia Mr. Leonard dizer com a sua voz forte: “Mandem-me cá Mr. Doran, por favor!”.
Aqueles longos anos de trabalho para nada. Toda sua habilidade e diligência deitadas fora. Quando rapaz novo, fizera as suas tolices, é claro; tinha-se mostrado livre pensador e negara a existência de Deus. Mas tudo isso era passado. Ainda hoje comprava um exemplar do “Reinolds Newspaper” todas as semanas, cumpria os seus deveres religiosos e durante quase todo o ano levava uma vida regular. Tinha dinheiro suficiente para poder casar. Mas não era isso: sabia que a família não havia de gostar. Primeiro que tudo, havia o desonrado pai de Polly e, além disso, a pensão da mãe estava ficando ultimamente com uma certa fama. Já imaginava os seus amigos falando do caso, rindo e fazendo troça da forma vulgar como ela falava. Mas que tinha a gramática a ver com isso, se realmente gostasse da moça? Não era capaz de decidir se gostava, ou se, pelo contrário, a desprezava pelo que havia feito. Certamente ele não fizera mal. O seu instinto dizia-lhe para ficar livre e não casar. Uma vez casado, tudo se acabaria.
Enquanto estava sentando na borda da cama, em atitude de abandono, Polly bateu levemente na porta e entrou. Contou-lhe tudo, que tinha dito à mãe e que a mãe iria falar com ele naquela mesma manhã. Chorou, deitou-se com as mãos em volta do pescoço e disse:
– Ai Bobo! Bob! Que hei eu de fazer? Poderia acabar comigo…
Ele confortou-a sem interesse, dizendo-lhe que não chorasse, que tudo acabaria bem, que não tivesse receito. Sentia de encontro à sua camisa a agitação dos seios da moça.
Não fora só por culpa dele que aquilo acontecera. Lembrava-lhe perfeitamente das primeira carícias casuais, que os vestidos dela, a respiração e os seus dedos, lhe tinham dado. Depois, uma noite, já tarde, quando se despia para se meter na cama, ela batera-lhe levemente na porta. Queria acender a sua vela, porque a dela apagara-se com o vento. Fora a sua noite de banho, vestia um longo roupão de flanela florida. O peito do pé muito branco aparecia nas suas chinelas abertas, e o sangue corria-lhe, quente, sob a pele perfumada. Também das suas mãos e pulsos, enquanto acendia a vela, subia um perfume suave.
Nas noites em que vinha para casa tarde, era ela que lhe esquentava o jantar. Ele quase nem percebia o que estava comendo, sentindo-a só a seu lado, de noite, naquela casa adormecida. E que cuidados Polly tinha! Se a noite estava fria, úmida ou ventosa, era certo encontrar um copo de “punch” preparado, a sua espera. Talvez pudessem ser felizes juntos…
Costumavam os dois subir as escadas nos bicos dos pés, cada um com a sua vela e, no terceiro andar, trocavam uns relutantes boas-noites. Costumavam beijar-se. Bob lembrava-se bem dos olhos dela, das suas carícias e do seu delírio…
Mas os delírios passavam. Repetiu como um eco a frase de que ela se servira, mas, agora, referindo-se-lhe: “Que hei de eu fazer?”. O instinto do celibato prevenia-o de que recuasse. Mas o pecado ali estava e a sua honra dizia-lhe que a reparação era necessária.
Enquanto permanecia sentado com Polly a seu lado, na borda da cama, Mary bateu à porta e disse que a senhora lhe desejava falar. Bob levantou-se para enfiar o paletó. Sentia-se mais desamparado do que nunca. Quando acabou de se vestir, voltou-se para Polly a fim de confortá-la. Tudo havia de correr bem, que não tivesse medo. Deixou-a chorando em cima da cama, resmungando:
– Ai, meu Deus!
Enquanto descia as escadas, os óculos ficaram de tal maneira embaciados que teve de tirá-los par alimpar. O que ele mais desejava era fugir, fugir pelo telhado, e voar para outra terra onde nunca mais ouvisse falar daquelas coisas e, no entanto, uma força o puxava para baixo, degrau em degrau. As caras implacáveis do seu patrão e de Madame estavam à frente da sua derrota. Nos últimos lances passou por Jack Mooney que vinha da copa com duas garrafas de cerveja nos braços. Cumprimentaram-se friamente; e os olhos do apaixonado pousaram, por um instante, na cara de buldogue e nos braços fortíssimos do outro. Quando chegou ao fundo da escada, voltou-se e viu que Jack o olhava lá de cima.
De repente, lembrou-se de uma noite em que uma das artistas do music-hall, uma loirinha de Londres, fizera uma alusão desagradável a respeito de Polly. A reunião quase tinha acabado por causa da fúria de Jack. Todos tiveram de o sossegar. A moça do music hall, um pouco mais pálida do que de costume, continuara sorrindo e dissera que não havia maldade naquilo. Mas Jack continuara gritando que se qualquer rapaz se metesse com a irmã, ele ferrar-lhe-ia os dentes na garganta…
Polly deixou-se ficar, durante um pouquinho, em cima da cama chorando. Depois enxugou as lágrimas e foi ver-se ao espelho. Molhou uma ponta da toalha no jarro da água e refrescou os olhos. Viu-se também de perfil e arranjou um gancho do cabelo que estava caindo, ao lado da orelha.
Em seguida, voltou de novo para a cama e sentou-se. Olhou por um momento as almofadas e isso acordou nela lembranças secretas e agradáveis. Deixou cair o pescoço contra o ferro frio da cama e começou a sonhar. Já não se notava perturbação alguma em seu rosto.
Ficou esperando pacientemente, quase satisfeita, sem nenhum alarme os seus pensamentos traziam-lhe gradualmente esperanças e visões para o futuro. As esperanças e visões eram de tal modo intrincadas que já não via claro nem se lembrava de que estava esperando alguma coisa.
Por fim, ouviu sua mãe chamar. Pôs-se de pé rapidamente e correu
para as escadas.
– Polly! Polly!
– Que é mamã?
– Vem cá abaixo, querida. Mr. Doran quer falar contigo.
E só então se lembrou do que estava a sua espera.