Texto de Estudo Juquery

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[toggle title=”Texto: 1: TEXTOS, LIVROS E DISSERTAÇÕES DE REFERÊNCIA” load=”hide”]O Juquery: sua implantação, projeto arquitetônico e diretrizes para uma nova intervenção
PIER PAOLO BERTUZZI PIZZOLATO

História da Loucura
Michel Foucault

DA NAU DOS LOUCOS AO TREM DE DOIDO:
As formas de administração da loucura na Primeira República –
o caso do estado do Espírito Santo
ALEXANDER JABERT

O Alienista
Machado de Assis

A Moral Burguesa (Século XIX)
Erich Hobsbawm

Crítica ao moralismo
Nildo Viana

Loucura, Gênero Feminino: As mulheres do Juquery na São Paulo do início do século XX
Maria Clementina Pereira Cunha

A formação dos territórios e a constituição das memórias na cidade de Franco da Rocha (SP) Adilson S. Reis

Os equívocos da internação compulsória
Maurício Fiore

Vozes Urbanas: Gestos de Pertencimento nos espaços simbólicos da cidade
Olimpia Maluf-Souza

Dramaturgia de uma nau de loucos: uma possibilidade cênica
Maria Everalda Almeida Sampaio

Entre febres, comas e convulsões: as terapias biológicas no Hospital do Juquery administrado por Pacheco e Silva (1923 -1937)
Gustavo Querodia Tarelow

Um Pinel à brasileira: Franco da Rocha e a reorganização da assistência a alienados
na cidade de São Paulo
William Vaz de Oliveira

Emergência da Psicanálise no Brasil: O pansexualismo de Francisco Franco da Rocha
Josiane Cantos Machado
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[toggle title=”Texto 2: Só Vim Telefonar, de Gabriel Garcia Marquez” load=”hide”]Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.

– Não importa – disse Maria. – Eu só preciso de um telefone.

Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados. A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ônibus. A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.

– Estão dormindo – murmurou.

Maria olhou por cima do ombro e viu que o ônibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.

– Onde estamos? – perguntou Maria.

– Chegamos – respondeu a mulher.

O ônibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimônia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho.

Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ônibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias. Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.

– Será que lá tem telefone? – perguntou Maria.

– Claro – disse a mulher. – Lá mesmo eles mostram.

Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. “No caminho eles secam”, disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou: “Boa sorte”. O ônibus arrancou sem dar tempo para mais nada.

Maria começou a correr para a entrada do edifício. Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso: “Eu disse alto!”, Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:

– Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.

Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório coletivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.

– É que só vim telefonar – disse Maria.

Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.

– Como é o seu nome? – perguntou.

Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.

– É que eu só vim para telefonar – disse Maria.

– Está bem, beleza – disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.

Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ônibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. Maria olhou-a de viés paralisada de terror.

– Pelo amor de Deus – disse. – Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.

Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado. O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicômios da Espanha. Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injetar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.

Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias. Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o diretor do sanatório. Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.

– Aproveite para chorar tudo que você quiser – disse o médico, com sua voz adormecedora. – Não existe melhor remédio que as lágrimas.

Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.

O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. “Ainda não, princesa”, disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. “Cada coisa tem sua hora.”, Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.

– Confie em mim – disse a ela.

Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo diretor: agitada.

Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos. Era a primeira vez que ela não chegava a tempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite. Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente. Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples. O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde atuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido. De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.

Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de gênio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tato e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a idéia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar. Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer. Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.

Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis. Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado.

Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível. “Existem amores curtos e amores longos”, disse ela. E concluiu sem misericórdia: “Este foi curto.” Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens.

Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite. Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. “E agora até quando?”, ele perguntou. Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes: “O amor é eterno enquanto dura.”, Dois anos depois, continuava sendo eterno.

Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de atriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida. Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. “Não sei nada”, disse Saturno. “Procurem em Saragoça.”, Desligou.

Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilômetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.

O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar. Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte. Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada Maria percebeu que não tinha fósforos. Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador. Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo.

Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio. No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. “O sinhôzinho não está”, disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo. Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita Maria não estava.

– Aqui não mora nenhuma Maria – disse a mulher. – O patrão é solteiro.

– Já sei disso – respondeu ele. – Não mora mas vai às vezes, não é?

A mulher se enfureceu.

– Mas quem está falando, porra?

Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona. Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz. Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.
Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canônicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro. Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade. A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efêmero. O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante noturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:

– Aonde estamos?

A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:

– Nas profundas do inferno.

– Dizem que esta terra é de mouros – disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.

– E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.

Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. Maria se assustou, e só ela sabia por quê.

Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse. “Você vai ter de tudo”, dizia, trêmula. “Você vai ser a rainha.”, Diante da recusa de Maria, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório. Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas. No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. Maria deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha. A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.

– Filha da puta – gritou. – Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.
O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.

Maria assistiu divertida ao espetáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.

Maria respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:

– São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.

– Veado – disse Maria.

Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.

– Alô?

Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.
– Coelho, minha vida – suspirou.

As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:
– Puta!

E desligou.

Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injetaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno. Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.
O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.

– Se alguma vez alguém souber, você morre.

Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de Maria. O diretor o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afetuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o diretor era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.

– A companhia de seguros do automóvel me informou – disse.

O diretor concordou satisfeito. “Não sei como o seguro faz para saber tudo”, disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:

– A única certeza é que seu estado é grave.

Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais freqüentes e perigosos.

– Que esquisito – disse Saturno. – Sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio.

O médico fez um gesto de sábio. “Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem”, disse. “Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.” No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.

– Deixe-a falar – disse.

– Fique tranqüilo, doutor – disse Saturno com ar alegre. – É a minha especialidade.

A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. Maria não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral. Deram um beijo de rotina.

– Como você se sente? – perguntou ele.

– Feliz por você enfim ter vindo, coelho – disse ela. – Isto foi a morte.

Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.

– Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro – disse, e suspirou com a alma. – Acho que nunca voltarei a ser a mesma.

– Agora tudo isso passou – disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara. – Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o diretor permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados. Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. “Em resumo”, concluiu, “ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.”, Maria entendeu a verdade.

– Por Deus, coelho! – disse, atônita. – Não me diga que você também acha que estou louca!

– Nem pense nisso! – disse ele, tratando de rir. – Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.

– Mas se eu já te disse que só vim telefonar! – falou Maria.

Ele não soube como reagir à obsessão temível. Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. Maria interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas. Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em Maria uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:

– Vá embora!

Saturno fugiu apavorado. Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos Maria, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.
– É uma reação típica – consolou o diretor. – Já passa.

Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver Maria de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil. Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários. Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a Maria, até que a realidade o venceu. Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para Maria. Mas também ela desapareceu.
Rosa Regas recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para Maria, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. Maria pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.

Do livro: Doze Contos Peregrinos – Gabriel Garcia Marquez | Abril de 1978.
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[toggle title=”Texto 3: O Estigma da Loucura e a Perda da Autonomia” load=”hide”]Alfredo Naffah Neto
Psicólogo; Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo _ USP; Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo _ PUC; Professor-Titular da PUC-SP, vinculado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica

O presente ensaio tematiza o estigma da loucura e a perda de autonomia que sofrem todos aqueles que recebem a sua marca. Inicia seu percurso reflexivo analisando um conto de Gabriel García Márquez, desloca-se em seguida para as memórias de Haim Grünspun, do Hospital Franco da Rocha, o Juquery, e para relatos de experiências psiquiátricas alternativas _ no caso, a Clínica Laborde, no Vale do Loire, França. Através dessas fontes, procura descrever o processo através do qual o louco perde a sua condicão de sujeito para a sociedade a qual pertence e o papel que desempenha a psiquiatria nesse processo.
Utiliza, nesse debate, citações de Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da Rocha e ngela Nobre de Andrade, além de García Márquez e Haim Grünspun.

UNITERMOS _ Sujeito, doença mental, moralidade e psiquiatria

Gabriel García Márquez, num de seus Doze Contos Peregrinos, intitulado “Só vim telefonar” (1), dá-nos uma das mais belas descrições literárias do estigma da loucura e da conseqüente perda de autonomia que ela impõe a quem recebe sua marca. Vale a pena deter-nos nessa criação literária e analisar os paradoxos que ela traça e explora, num limite que beira as raias do absurdo.

Maria de la Luz Cervantes, a personagem central, é uma atriz mexicana, casada com um prestidigitador de salão, a quem acontece o acidente imprevisível de ter o carro quebrado na estrada, numa tarde de chuvas primaveris. Ao fazer sinais na estrada, em busca de socorro, surge mais um imprevisto: o único veículo que atende ao seu sinal e pára, para lhe dar uma carona, é um ônibus estranho, repleto de mulheres sonolentas, todas envoltas em cobertores. Maria ainda não sabe, mas acaba de entrar num ônibus que carrega as loucas de um hospício; sabe ainda menos que essa é uma porta que possui somente entrada, nenhuma saída.

Enrola-se num cobertor e adormece; quando o ônibus chega ao seu destino, Maria nota coisas estranhas: ao tentar chegar ao edifício, um guarda manda-a entrar numa fila. Quando pergunta por telefone, respondem-lhe de um jeito dissimulado: “Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui”, como que seguindo aquele velho preceito de que não se deve negar nada a um louco, confrontando-o diretamente.

É evidente que, no interior do hospício, não encontram o nome de Maria na lista das pacientes e que a enfermeira-chefe estranha que ela não leve a identificação num cartão costurado no sutiã, como todas as recém-chegadas, mas isso naquele contexto não significa muita coisa: se ela estava no ônibus do sanatório é porque é uma paciente, identificável ou não. Ou seja, no interior de um hospício os códigos identificatórios seguem um sistema rigorosamente binário: ou se é funcionário ou se é louco; como Maria não é funcionária, segue-se que… “Como é o seu nome?”, pergunta-lhe a superiora. Ela dá o seu nome e acrescenta: “É que eu só vim para telefonar”. Como resposta, recebe um condescendente: “Está bem, beleza, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã”. Resposta que transfere para um amanhã, incessantemente prorrogado, a promessa de contato com o mundo exterior.

Isso significa que, ali, a palavra de Maria não vale pelo que diz, que _ para aquela gente _ seu discurso possui apenas valor de sintoma. Sua afirmação: “É que eu só vim para telefonar” pode significar duas coisas: ou que está em pleno delírio, ou que está tentando um estratagema ingênuo para fugir do hospício; nunca que veio, de fato, para telefonar. Afinal, quem se desloca até um hospício _ normalmente cercado de muros e portões _ para telefonar? Evidentemente, as suas testemunhas possíveis _ o motorista do ônibus e a mulher que lhe deu o cobertor, quando entrou no veículo _ a essa hora já estão fora de circuito; além do mais, quem iria se lembrar exatamente como tudo aconteceu? O fato é que ao entrar naquele ônibus Maria tornara-se uma louca, perdendo a autonomia no instante exato em que recebia, como uma marca em fogo, o estigma da loucura. Esquirol, com a sua psiquiatria moralista, dizia que: “Existem alienados cujo delírio é quase imperceptível; não existe um no qual as paixões, as afeições morais, não sejam desordenadas, pervertidas ou anuladas….” (2). Seguindo este preceito é preciso, pois, todo o cuidado para não se deixar enganar por eles, porquanto todos têm o pensamento perturbado, sofrem de desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre (3).

Na esteira desse código, os funcionários do hospício não se deixarão seduzir por Maria, seus delírios telefônicos, suas súplicas. Se até então o único indício de sua doença era o fato de ter entrado no hospício com as outras pacientes, as suas reações frente ao regime manicomial _ tentativas de fuga, horror e descontrole emocional diante do que vê _ logo criarão outros indícios, estes sim, “inquestionáveis”. Tanto assim que logo recebe inscrição, número de série, um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e uma qualificação, escrita à mão pelo diretor: agitada. A marca da doença está ratificada, consumada.

A grande maestria de García Márquez, nesse conto, consiste em ir alinhavando um conjunto de circunstâncias, de acasos, e em fazer com que, na sua articulação, também casual, eles produzam um destino inexorável; um pouco como nas tragédias gregas. Dentro dessa proposta literária, é proposital que a personagem em questão não possua um marido muito preocupado com as suas andanças e sumiços; já tendo sido abandonado por ela outras vezes e tendo sérias desconfianças de que ela o trai com um jovem “consolador de aluguel de mulheres casadas”, o Mago Saturnino acaba por se convencer de que esse sumiço significa mais um dos abandonos dessa mulher de gênio irascível e sexualidade descontrolada. Assim, quando Maria, após muitos sofrimentos _ e aproveitando-se de um descuido dos funcionários _ consegue finalmente chegar a um telefone e ligar para o marido, dizendo-lhe: “Coelho, minha vida”, recebe como resposta um sonoro:”Puta!” e o telefone desligado. Ocorre, então, a sua segunda tentativa de fuga, jogando-se contra o vitral do jardim e caindo banhada em sangue. Se antes já fora amarrada por punhos e pés à cama, agora é arrastada ao pavilhão das loucas perigosas, “acalmada” com uma mangueira de água gelada e com injeção de terebentina nas pernas, para que a inflamação não lhe permita caminhar. Assim, Maria só vai conseguir avisar o marido do seu destino quando aceita as seduções sexuais da guarda da noite, Herculina, em troca do favor do telefonema.

Mas é evidente que quando o discurso de Maria _ como o de todos os loucos _ perde credibilidade, essa potência da qual é despojada desloca-se para alguém: a figura do médico, o único intérprete credenciado, detentor da “verdade” do louco, portanto, de um poder absoluto sobre ele. A exibição desse saber/poder aparece no diálogo do diretor do hospício com o Mago Saturnino, logo depois de sua chegada para visitar Maria: “A única certeza é que o seu estado é grave”, diz o diretor. “Que esquisito”, replica Saturnino, “sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio”. “Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem. Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte”, conclui o diretor, como um grande sábio ao finalizar a explicação para um leigo, um não-iniciado.

E o Mago Saturnino _ como todo mundo _ acredita na palavra da autoridade. Afinal, quem pode entender melhor de “condutas latentes que explodem sem mais nem menos” do que o médico? É evidente que a palavra da autoridade vem, aqui, se amoldar a todas as dúvidas que Saturnino sempre teve sobre o gênio descontrolado de Maria, com todas as suas idas e voltas. Finalmente, aparecia uma figura que, com autoridade e credibilidade inquestionáveis, propunha-se a controlar o gênio irascível e imprevisível de Maria, a curá-la do mal dessas “condutas latentes que explodem” de repente e deixam a gente sem saber o que fazer. O desejo inconfesso do Mago Saturnino _ controlar os arroubos de Maria _ realizar-se-ia, pois, através do diretor do hospício.

Restava ainda _ para confirmar as palavras do diretor _ o desespero total de Maria, a “explodir” numa conduta descontrolada quando percebe que seu marido, o único que poderia libertá-la, também fora capturado pelo sistema. “Então”, escreve García Márquez, “agarrou-se ao pescoço do marido, gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre as suas costas” (4). Observe-se aí a expressão “gritando como uma verdadeira louca”, que descreve a transfiguração de Maria naquilo que uma conjunção de acasos transformara num destino: finalmente, ela encarnava a loucura. Mas não a loucura “essência natural”, oriunda de algum mau funcionamento biofisiológico; essa loucura fora produzida socialmente, construída parte por parte, detalhe por detalhe. Sua gênese histórica jazia em dois acasos: seu carro ter-se quebrado na estrada, numa tarde de chuvas, e ela ter pedido carona a um ônibus desconhecido.

Mas quantas avarias nós todos não enfrentamos ao longo do tempo e em quantos ônibus desconhecidos não nos metemos pela vida afora? Por que, então, não nos tornamos também loucos? Este percurso reflexivo só nos permite uma resposta: por mero acaso.

O conto de García Márquez tematiza a condição do louco, o estigma dessa marca e a conseqüente perda de autonomia que ela implica. Poderíamos resumir essa condição numa só frase: o louco perde _ para a sociedade a qual pertence _ a sua condição de sujeito, no sentido etimológico do termo: sub-jectum, aquele que subjaz às ações, às enunciações do discurso. Desde o instante em que a marca da loucura lhe foi imputada, é como se no lugar do sujeito aparecesse a doença mental; então, o discurso e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias, tornando-se apenas sintomas da doença. Julgado incapaz de decidir sobre o seu destino em todas as instâncias, que vão desde a liberdade de locomoção até as decisões sobre a forma de tratamento que recebe, o louco é transformado num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico.

Nas suas memórias sobre o Juquery, o Hospital Franco da Rocha, quando ainda era um médico-estagiário, Haim Grünspun nos conta o caso da mulata Judith, internada com “psicose pós-parto, num quadro confusional muito grave e que melhorou após um tempo de tratamento” (5). O médico mandou-a, então, para casa, durante uma semana, após o que deveria voltar ao hospital para ser reavaliada e se decidir sobre sua alta. O que Haim nos relata é a conversa que ouviu entre ela e o marido, na viagem de trem em que retornava para essa avaliação. Retomo, em seguida, alguns fragmentos dessas falas, para exemplificar o que estou denominando perda da condição de sujeito.

“Minha Santa, não precisa se afligir tanto. Você está bem. Eu vou explicar tudo direitinho ao médico, e ele vai dizer que você está curada”. “Você viu como consegui cuidar do nenê e que até o seio eu dei para mamar e que não precisei de socorro de ninguém, que saí sozinha, que fiz compras, dei banho na menina e no nenê e nem tua mãe ficou alarmada e ficou até admirada com o que eu consegui fazer?” “Mas é lógico, minha Santa, igual como você sempre fez e nunca se importou nem com o julgamento de tua mãe nem com a ranzinzice e resmungos da minha” “E você conta para o doutor que posso até ficar sozinha sem a ajuda das velhas. Que não tem perigo de eu ficar nervosa como fiquei (…). E se eu precisar de choque outra vez, se o médico achar que falta ainda para eu me curar? Acho que não agüento ficar mais naquele pavilhão. Eu soube que tinha gente que vinha uma vez por semana só tomar o choque e voltar para casa. Você fala com o doutor, que você me traz e que você pode perder um dia por semana o trabalho, para me trazer (…). Você conta para ele que dormi todas as noites…” e a conversa continuava, no mesmo tom ansioso, de alguém que tinha perfeita consciência de que a sua palavra perdera todo o valor, de que seria necessário o testemunho do marido para convencer o médico da sua cura. “Não preciso dizer nada, minha Santa, acho que basta você falar com o médico. Não preciso fazer a sua defesa. Você não é acusada de nada.

Você só esteve doente e agora está ficando boa”, conclui o marido, procurando questionar a sua posição de ré. Mas Judith sabe que, uma vez recebida a marca da loucura, o seu fantasma nunca mais desaparece: “Viu, mesmo você, que gosta de mim, acha que estou ficando, não disse que já estou”. Ou seja, ela percebe que tudo o que o marido testemunhara não era suficiente para convencê-lo completamente da sua cura. Quando ele responde, confirma a suspeita da mulher de que a última palavra cabe ao médico: “Mas eu não sou médico, por isso é que nós vamos ao médico. Você é que não está com confiança. Eu confio muito”. O final da conversa é patético: Judith percebe que, apesar da presença e solidariedade do marido, encontra-se irremediavelmente só nessa tentativa de resgate da sua condição de sujeito: “É verdade, a empreitada é minha, eu é que vou falar. Não vou sucumbir ao medo, não vou me abater como covarde. Não vou fazer alarma, não vou gritar, não vou chorar. Vou simplesmente contar como passei desde o dia que saí, e ele, se quiser, que acredite”.

Algumas questões podem ser colocadas a partir daí. A primeira delas _ de caráter filosófico _ é até que ponto a condição de sujeito não é, em si mesma, uma ficção. Nietzsche, por exemplo, considerava a postulação do sujeito como “uma simplificação para designar, enquanto tal, a força que aloca, inventa, pensa, por oposição a toda alocação, invenção, pensamento” (6). Essa consideração cai como uma luva no âmbito da teoria das forças, que caracterizou o terceiro período dos escritos nietzschianos e que interpreta o mundo microscopicamente, a partir dos múltiplos campos de força que o constituem e lhe dão forma a cada momento. Dentro desta concepção, qualquer ação humana é produzida não por um sujeito autônomo, mas pela conjuntura singular de forças, a maior parte delas inconscientes, que articulam o desenrolar do devir humano. A postulação do sujeito torna-se, então, apenas uma questão gramatical, uma ficção criada por certas estruturas de linguagem. Entretanto, em momento nenhum Nietzsche desconhece que, ficção ou não, ela seja uma forma de interpretação de mundo ou, mais do que isso, que seja a forma de interpretação dominante no mundo contemporâneo _ aquela que fundamenta a existência das leis, dos códigos penais e da própria categoria do cidadão, para os quais é indispensável a idéia de um sujeito responsável pelos seus atos. Que é, portanto, através desse código interpretante que os direitos civis de alguém podem ser cassados ou restituídos. É, pois, nesse âmbito que se deve interpretar a perda da condição de sujeito pelo louco, problema mais de caráter político do que ontológico ou cosmológico.

Outra questão que pode surgir, esta de cunho psiquiátrico, é se, de fato, a loucura não priva o ser humano da sua capacidade de julgamento, de tomar decisões, portanto da sua condição de sujeito. Seus argumentos são a existência de delírios, alucinações, que _ por ocasião dos surtos _ colocam o louco numa incapacidade para distinguir entre o falso e o verdadeiro, a fantasia e a realidade. Conclui perguntando se essa condição não justifica todo o confinamento e tutela do louco, geridos pelo poder/saber médico. Contra esse argumento, sempre é possível se invocar, como testemunha, experiências como a empreendida pela Clínica Laborde, criada por Jean Oury e Félix Guattari _ entre outros _ no Vale do Loire, França. Lá, como em toda instituição, pode-se encontrar pacientes em diferentes estados, com ou sem delírios, alucinações e outros tipos de sintoma. Entretanto, funciona sempre como uma comunidade aberta, autogerida, onde os pacientes se misturam aos estagiários e aos funcionários, onde as divisões de trabalho seguem as preferências e as possibilidades de cada um, onde há total disponibilidade de circulação pelos vários ambientes: cozinha, enfermaria, sala de refeições, sala de TV, biblioteca, ateliers, etc.

Onde, enfim, estimula-se o contato com a alteridade em todos os níveis. Como comenta Nobre de Andrade, a partir de um estágio realizado nessa clínica: “Essa vivência do insólito (daquilo que não está capturado pelo nosso código representacional e identitário) está presente na nossa vida e podemos lidar com ela de duas formas: acolhê-la ou negá-la. Não precisamos estar em contato com psicóticos para vivermos `isso’, mas, nesse contato, experenciamos essa `insolidez’ de um modo mais forte. A tendência da sociedade é negar essas vivências ou, quando isso não é possível, enquadrá-las numa doença chamada loucura, tornando-as ainda mais ameaçadoras. A beleza de Laborde está exatamente em nos permitir acolher esse insólito, vivê-lo como algo transformador, que abre passagens, traz à tona afetos até então desconhecidos. Afetos que apontam para aquilo que temos de mais bonito e criativo: a nossa potência de viver a vida em sua plenitude, acima e aquém dos códigos aprisionantes. A sensação de `suavidade’ (7).

É, de fato, um clima de liberdade e solidariedade que passa através dos seus relatos: “Fui motorista do furgão (transporte para aqueles que moravam em Blois e freqüentavam a Laborde como hospital-dia) diversas vezes e nunca me esqueço da primeira vez: “eu estava muito ansiosa, pois nunca tinha dirigido um carro grande como aquele; é claro que todos os `maluquinhos’ sentiram e perguntaram logo se era a primeira vez que eu dirigia aquele carro. Confirmei. Imediatamente começaram a me acalmar, dizendo que eu estava indo muito bem, que eu era boa na direção, etc. Além dos elogios, agradeciam muito, como se eu estivesse fazendo um grande favor (havia uma falta crônica de motoristas para o furgão). Eu gostava muito de fazer aquelas viagens…Era sempre o mesmo grupo de pessoas e rolava um afeto gostoso ali dentro daquele carro… Eu já sabia onde deixar cada um… E as conversas (e silêncios) eram suaves e aconchegantes. Às vezes, após deixar o último passageiro na estação, eu me sentava num restaurante à beira do Loire para beber um copo de vinho… Fim de tarde e o pôr do sol… Realmente, não dá para sair imune de tudo isso” (8).

Também no seu contato com pacientes de Laborde, Nobude Andrade _ com paciência e persistência _ sempre descobria alguma forma possível de contato, de forma de humanidade a ser partilhada: “Do outro lado do extenso gramado em frente do castelo, eu encontrava sempre o Felipe. `Meu grande-pequeno preferido Felipe’. Ele passava horas e horas agachado ali, brincando com seus bichos de pelúcia, suas bonecas Barbies, seus bichinhos de plástico, etc. Contaram-me que ele corria para lá mesmo quando nevava….E corria mesmo! Eu o via sempre atravessar aquele gramado, correndo naquele seu jeito torto, em direção aos seus brinquedos, levando nas mãos uma jarra de café e um pote de bloquinhos de açúcar… Eu não entendia como tudo aquilo não caía no chão… O Felipe dormia no parque (…). A minha aproximação (…) foi difícil e, muitas vezes, frustrante. Eu ficava atrás dele… Rodeava-o… Sentava do seu lado no gramado… Mas ele não parecia notar a minha presença. E quando se dirigia a mim, eu não entendia o que falava. Esse contato começou pelo cigarro. Era a única coisa que eu entendia: quando ele me pedia `um Marlboro’. Mas algo vai acontecendo sem você se dar conta e, de repente, lá estava eu, sentada ao lado de Felipe, num banco do jardim, `conversando’. Literalmente, conversando… Não me perguntem sobre o que conversávamos… Não sei. E não importa. Importa que, entre outras coisas, eu consegui entender que ele gostava de música e lhe disse que adorava uma música de Jacques Brel, `Ne me quitte pas’. E Felipe cantou a música inteira para mim…”(9).

A partir desse único exemplo pode-se constatar que mesmo pacientes que seriam considerados psiquiatricamente bastante comprometidos pela ciência acadêmica vigente podem viver num clima de liberdade, autonomia e consideração mútua, dependendo apenas de que se lhes respeite a condição de seres humanos. Não se trata absolutamente de tingir a loucura com cores românticas: sem dúvida, são pessoas que vivem experiências difíceis, doloridas, dilacerantes, experiências que _ na maior parte das vezes _ não encontram uma alocação possível na esfera gregária do sujeito e que resistem às formas de comunicação pelos códigos partilhados. Mas que, nem por isso, são menos humanas, menos passíveis de reconhecimento e de solidariedade.

Pela genealogia traçada por Foucault _ e já inaugurada por Nietzsche, antes dele _ o grande problema da psiquiatria é ter se tornado, desde os tempos de Hoffbauer e Esquirol, no início do século XIX, uma disciplina moral. Esquirol avaliava o grau de sanidade e loucura dos seus pacientes pelas suas afeições morais. Se eram “desordenadas”, “pervertidas”, isso era sinal de alienação; já a cura significava “a volta às afeições morais dentro dos seus justos limites, o desejo de rever seus amigos, seus filhos, as lágrimas de sensibilidade, a necessidade de abrir seu coração, de estar com sua família, de retomar seus hábitos” (2). Na história da psiquiatria brasileira, Franco da Rocha foi talvez um dos mais fiés discípulos dessa ciência moralista. Para atestar isso basta ler os seus preceitos: “Há indivíduos, e contam-se por legiões, que não são declaradamente loucos nem de mentalidade perfeitamente normal: são os degenerados que, gradativamente, sem linha bem definida, estabelecem a transição entre o louco e o são de espírito” (10). “Ao grupo de degenerados vêm juntar-se, muito naturalmente, os desclassificados da sociedade. Denominamos desclassificados a uma série de tipos especiais que não cabem nem na sociedade nem no hospício (…). Eles estão na rua, por toda parte. Agite-se um pouco a sociedade por qualquer motivo, e eles surgirão logo. São candidatos constantes ao hospício” (11). “Os revolucionários são os companheiros dos paranóicos, com os quais se confundem muitas vezes, com a diferença de que os paranóicos revelam perturbações intelectuais que os excluem mais depressa da comunhão social, por darem mais na vista de todos” (12). “O sonho de grandeza do criminoso, ora oculto, ora bem claro, revela-se por demais evidente nos anarquistas e nos magnaticidas. A egofilia nestes, não tendo derivação na arte, como soe acontecer com o poeta, expande-se nas ruidosas manifestações contra a moral vigente, contra a lei, contra tudo”(13).

Uma psiquiatria dessa índole está, sem dúvida, mais perto da política do que da medicina ou da psicologia _ e da política reacionária, que funciona como leão de chácara das classes e culturas dominantes para a manutenção do status quo. É pois, desse mesmo Franco da Rocha, que podemos ouvir as seguintes advertências: “A liberdade, quando se trata de doidos, não pode deixar de ser muito relativa. A preocupação de evitar o aspecto de prisão, de dar ao asilo a aparência de habitação comum, tem sido um pouco exagerada por alguns alienistas. O caráter de prisão é, no entanto, inevitável: quando não estiver nos muros e janelas gradeados, estará no regímen, no regulamento um tanto severo, indispensável para um grande número de doentes. Esse regime, porém, não impedirá o gozo de ampla liberdade aos que se achem em condições de usufruí-la. Um bom asilo deve ter secções diversas, nas quais a liberdade se gradue pelo estado mental dos pensionistas. O excesso de zelo pela liberdade dos loucos pode facilmente degenerar em futilidade” (14).

Então, fico pensando: quem sabe, por um desses acasos da vida, o Dr. Franco da Rocha não andou pelo México, quem sabe não era ele o chefe do hospício onde foi parar Maria de la Luz Cervantes, o mesmo que conversou com o Mago Saturnino? Ou, então, quem sabe Gabriel García Márquez não se enganou: a atriz não se chamava Maria de la Luz Cervantes, mas Maria da Silva, o país não era o México, mas o Brasil, e o hospício não era o Juquery? Vai saber…

Abstract _ Madness Stigma and Loss of Autonomy
The main subject of this study is the madness stigma and the loss of autonomy, suffered by those who are marked by it. The author begins his reflections by analyzing a story written by Gabriel Garcia Marquez, then the memories by Haim Grünspun of the Franco da Rocha Hospital (“Juquery”), and the reports on psychiatric alternative experiences, such as in the Laborde Clinic, in Loire Valley, France. Using these sources, the author describes the process through which an insane person looses his/her condition as an individual for the society in which he/she belongs, as well as the role played by psychiatry in this process.
In this debate, the author utilizes quotations of Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da Rocha and ngela Nobre de Andrade, in addition to Garcia Marquez and Haim Grünspun.

Referências
Márquez GG. Só vim telefonar. In: ______. Doze contos peregrinos. trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Esquirol. Citado em Foucault M. A casa dos loucos. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979: 121.
A prática de internamento dos loucos, no começo do século XIX, coincide, segundo Foucault, com um momento em que a loucura passa a ser concebida menos como uma perturbação de julgamento, uma forma de erro ou de ilusão – que, enquanto tal, permitira a convivência com o louco sem grande perigo, até então – e mais como uma perturbação no eixo paixão-vontade-liberdade, ou seja, como perturbação das afeições morais. É precisamente isso que a torna perigosa para a sociedade, passível de confinamento. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
Márquez GG. Op. cit. 1992: 123.
Grünspun H. Mulata Judith. In: Trem para o hospício. São Paulo: Cultura, 1980: 73.
Nietzsche F. Fragmento póstumo 2[152], outono de 1885 – outono de 1886. In: ______. Oevres philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1978. v.12: 142.
Andrade AN. A angústia frente ao caos: um estudo genealógico da formação do psicólogo clínico (tese de doutorado). São Paulo: PUC, 1996: 104.
Andrade AN. Op.cit. 1996: 106.
Andrade AN. Op.cit. 1996: 108-9.
Franco da Rocha. Esboço de psiquiatria forense. Citado em Cunha MCP. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986: 51.
Franco da Rocha. Causas da loucura. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 51.
Franco da Rocha. Contribuition a l’étude de la folie dans la race noir. Citado em Cunha MCP. Op. cit.
1986: 52.
Franco da Rocha. Do delírio em geral. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 52.
Franco da Rocha. Hospício e colônias do Juquery. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 88.
Endereço para correspondência:
Rua Consórcio, 75 – Vila Olímpia
04535-090 São Paulo – SP

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