Prelúdio

2 de outubro de 2013 0 Por Meire Ramos

O prelúdio desse mês compartilha duas lutas urgentes e necessárias, que precisam estar em pauta, em discussão, e para alem disso, precisam gerar ações efetivas: a luta dos povos indígenas e o fechamento da Escola Livre de Teatro de Santo André. Temos todos que nos mobilizar.

Em junho recente, o Brasil deu uma mostra do que o povo é capaz. Não podemos parar, porque os donos do poder não dormem! A nossa luta é eterna e ininterrupta.

Karaí Miri

Nosso xondaro ruvixa, Karai Mirĩ, durante o protesto na Bandeirantes. 
Que suas palavras inspirem nossa luta!

“Essa terra não é minha e não é de vocês. Não foram vocês que fizeram e não fui eu. A terra que está aí é de Nhanderu! As matas e os pássaros que nela vivem. Mas não há mais árvores frutíferas para os pássaros se alimentarem. Vocês destruíram os animais de caça, Vocês destruíram tudo. Vamos viver numa terra deserta, devastada? Sem nada do que antes havia sobre ela, sem ter o que comer? E por isso estou bravo com vocês brancos, com os deputados.
Porque vocês só querem maltratar aqueles que sofrem? Colocar mais leis que dificultam a nossa vida? Como vamos ficar agora? Vamos todos nos destruir?
Vocês querem enganar todos os índios. Querem me enganar. Se quiserem me matar, podem matar. Mas o meu espírito vocês não podem matar. Ele vai voltar para a morada do meu pai celestial. Ele vai buscar meu espírito. O meu corpo vocês podem matar, hoje, amanhã, no dia que quiserem. Mas o meu espírito vai à morada de Nhanderu.”

Escola Livre de Teatro mais uma vez ameaçada ou “Como alianças indiscriminadas nos processos políticos podem produzir balas perdidas que atingem os próprios companheiros

Falemos um pouco de um processo histórico. Falemos da Escola Livre de Teatro (ELT), uma escola que inovou a metodologia do aprendizado teatral dentro de uma instituição de ensino, tornando-se referência nacional e internacional.
A ELT foi criada em 1990, sob administração do prefeito Celso Daniel que compreendia que Santo André, por ter sido expoente da criação teatral e conservar um modo de produção vinculado à ideia de grupo, merecia ter um lugar que representasse essa sua característica e proporcionasse aos cidadãos o melhor do teatro nacional.
Era interessante fazer com que as pessoas não abandonassem a cidade para estudar na capital em busca de uma escola de qualidade, mas o contrário, que cidadãos do entorno e de outras regiões pudessem encontrar em Santo André, na Escola Livre, um centro de referência.
Começava assim um projeto, hoje arduamente promovido pelo PT, de descentralização, de interiorização e ampliação dos horizontes para além das capitais e grandes metrópoles.
A Escola Livre funcionou ligada ao poder público com uma relação clara e aberta, enquanto a Secretaria de Cultura compreendeu a autonomia necessária à sua coordenação, em função de uma metodologia pouco praticada.
A escolha dos profissionais ligados à Escola somava a competência didática, ao conhecimento artístico, mas também à prática do ofício, uma vez que, segundo esta pedagogia, ensinar e aprender constituem um binômio capaz de transformar experiência em conhecimento e vice-versa.
Cada curso era discutido minuciosamente pela coordenação, quadro de professores e quadro de alunos. O plano de trabalho estabelecido de acordo com o rendimento, absorção e desenvolvimento de cada turma, em particular, era formado a partir das diretrizes pedagógicas em diálogo com as características do grupo, que se evidenciavam à medida que o curso se desenvolvia.
Assim, esta Escola formou artistas da cena capazes de atrelar o seu fazer à realidade do seu entorno e a expressar o pensamento, fruto de construções coletivas, gerado pela experimentação prática e reflexiva de diversas ações artísticas.
A ELT não é mais uma escola de teatro, é um centro de criação e tem uma pedagogia própria, capaz de gerar o artista, atuante em seu tempo, que longe de ser uma celebridade, é um trabalhador que direciona seus esforços à recuperação dos sentidos da existência humana na construção mais humanista da sociedade.
Muitos anos se passaram desde a criação e instauração da ELT. Podemos citar dois momentos de implantação desta escola. O primeiro, quando não havia uma sede fixa e professores e alunos ocupavam espaços temporários atrás de condições que mantivessem o nível de qualidade desejado em seu trabalho.
A ausência desta sede criou uma armadilha de fácil manipulação para o governo seguinte que, derrotando o PT nas urnas, não conseguiu manter a Escola colocando um coordenador e alguns professores sem preparo pedagógico e ideológico para este tipo de formação, fazendo com que os próprios alunos a abandonassem.
O segundo momento, que dura até hoje, é marcado pelo retorno de Celso Daniel à prefeitura. A ELT é reimplantada, dessa vez, com um espaço fixo de ocupação: o Teatro Conchita de Moraes, um teatro que possibilitou a experimentação e a retomada do projeto pedagógico original da Escola.
O sucesso desta experiência gerou palestras, debates, discussões em academias, provocou a criação de escolas livres em outras linguagens artísticas e é uma referência para a abertura de diversas escolas de teatro.
O que me pergunto incessantemente, creio que muitos de nós nos perguntamos, é o que faz o atual governo de Santo André, espantosamente do mesmo partido político que dá origem a esta experiência bem sucedida para a cidade e para o país, sucatear um sistema pedagógico como esse?
Sem ceder aos reais motivos, que longe de qualquer disputa ideológica parece ser mero ressentimento pessoal de um indivíduo, que por ignorância ou arrogância, destrói o que desconhece ao invés de aprender com o que é diverso de si, acredito que o papel da política seja no mínimo, preservar os interesses do Estado.
Em nome dessa política, que deve lutar pela preservação dos mecanismos fortalecedores do coletivo na construção dos direitos humanistas da sociedade, como artista, ex-professora e ex-coordenadora da ELT, peço que esta Secretaria de Cultura, com total respaldo da Prefeitura, reveja sua atitude e reinstaure a dignidade do ensino da Arte Teatral, assegurando, definitivamente, a permanência do projeto pedagógico da Escola Livre de Teatro em Santo André.

Campinas, 30 de setembro de 2013

Tiche Vianna
Diretora e Pesquisadora do Barracão Teatro
Vice-Presidenta da Cooperativa Paulista de Teatro