Ter ou viver a cultura!

Ter ou viver a cultura!

7 de julho de 2015 0 Por Meire Ramos

Por Tiago Henrique Cardoso

 

ter ou viver a culturaA cultura é matéria que rende muito debate, dá muito pano pra manga, gera concordâncias e dissensos, é um campo cheio de propostas, mas também de negligências. Afinal, qual é a importância que a cultura possui pra nós, hoje? Admito que não seja uma pergunta banal, de se fazer em qualquer hora. Possivelmente, ela leva a outra pergunta um tanto mais provocativa: o que é cultura? Sua resposta não é fácil e certamente há muitas teorias que buscam defini-la.
Aqui, eu valho-me do empirismo rasteiro do dia-a-dia e do grosso do olho para sugerir que se predominam, hoje em dia, duas concepções de cultura: cultura como um bem de consumo, e cultura enquanto um fluido de vivências. Perdoem-me os antropólogos e sociólogos não consultados se eu por acaso lhes tomar alguma ideia sem os devidos créditos — é que eu ainda não alcancei as altas prateleiras dos livros.
Algumas pessoas podem replicar ou concordar, a critério de eu ser culto o suficiente para discutir, ou não, questões culturais. Perguntarão: “Por acaso, já foi em museus?”, “Leu livros sobre a matéria?”, “Frequentou bibliotecas e livrarias?”, “Já foi em alguma mostra artística?”, “Assistiu a alguma peça de teatro?”. Todas essas experiências recheiam o currículo imaginário dos intelectuais para lhes dar o direito à palavra final de múltiplas conversas. Neste ponto, a cultura ganha uma definição meramente econômica, ditada pelo enlace cada vez mais íntimo entre o academicismo e o consumo. Originalmente alheia a mim, eu preciso “obter” a cultura a fim de ter credenciais para me posicionar no mundo.
Essa necessidade é fruto de imperativos da escola, trabalho, faculdade, programas de tv, e de discursos disseminados inclusive em redes sociais, segundo os quais culto é, em resumo, aquele que mais lê. Trata-se de uma imagem muito próxima a do especialista, embora jocosa e paradoxalmente a figura do “culto” é o personagem do “especialista generalista”. Deve ele entender do céu e da terra, acompanhar as coleções das editoras sobre as porcelanas, passando sobre a história da arte, até novas tecnologias, acompanhar os prêmios de cinema, ser conhecedor de outros países, discutir as traduções de livros, e mil e uma outras pompas intelectuais.
Perdido em sua própria zona de conforto, o culto é o homem que realiza as suas atividades intelectuais em função da cultura enquanto um bem de consumo, isto é, um produto com o valor de uso e de troca. Sem a sua qualidade econômica, a cultura lhe perde o prestígio e funcionalidade, como um objeto gasto ou quebrado. O seu dono, o intelectual, precisa sempre se valer de novidades linearmente produzidas pelas grifes do mercado cult, comumente expressas em suas falas de citação dos pensantes acadêmicos ou dos passeios culturais que faz. Assim como qualquer outro consumidor exigente, o culto também possui o gosto requintado: não pisará ele em qualquer sala de cinema, nem folheará as páginas de um livro desqualificado, pois não vale ser blockbuster, não pode ter tradução ruim, e, ademais, não pode receber o esconjuro da crítica.
Vale a pena dizer que essa concepção de cultura não produz apenas a figura polida do culto, mas também a do seu inverso, o que na faculdade se chama “alienado”, na escola conhecemos como “burro” e para algumas pessoas se trata do “ignorante”. Se recuperarmos os episódios do nosso passado infantil, encontraremos na sala de aula o grupinho de alunos nerds que costumavam sentar-se à frente e cumprir todas as tarefas com boa nota e, a seu oposto, a turma folgada dos moleques que se sentavam nos fundos e que despertavam profunda descrença nos professores. Essa é uma dualidade que nos parece um tanto ingênua, já que aparentemente o desempenho escolar das crianças decorre de sua natureza e da sua educação recebida dos pais. O sistema quantitativo de avaliação e a concepção bancária de aprendizagem poucas vezes são pensados como fruto da ideia de cultura enquanto um bem a ser adquirido. Quero dizer que a ideia de educação bancária, pensada por Paulo Freire, e a ideologia econômica de cultura são irmãs gêmeas. Elas são convenientes para justificar as artimanhas de privilégios onde poucos podem fazer parte e, se assim ocorrem, cumprem a função de manter uma linguagem unívoca de arte e cultura como algo distante e complexo, restrita à população “instruída” — menciono, a exemplo sarcástico, os típicos apreciadores de escultura de mictório e de borrões nas telas brancas.
Já que não correspondo à figura ilustre daqueles que leem uma porrada (ou, em sua fina linguagem, miríade) de livros, que frequentam o cinema, que vão às livrarias, o que resta a mim? Bem, vou ao bar, fazer hora, beber uma, escutar o violão dos amigos; ou então, em fim da tarde, me ocupar com a celebração da igreja, orando e cantando hinos; ou ainda preferir ficar sozinho e escutar a música da rádio. Poxa vida, pensando bem, dá pra fazer uma programação legal, em um sábado ou domingo de folga… E isso é possível porque essas opções, além de fontes de prazer, também são práticas culturais. Isso mesmo, não se engane: ir ao bar, ao fluxo, visitar a igreja, assistir a novela, e tantas outras coisas que a gente faz no cotidiano são hábitos e expressões de nossa cultura. Pode apostar que isso é uma grande descoberta, porque no corre-corre do dia-a-dia, poucas vezes a gente vê os nossos próprios dotes, o quanto produzimos novas linguagens, novas formas de se virar e de viver, o quanto apresentamos, surpreendentemente, novas versões de nós, inclusive, a cultural. A obviedade se furta de nossa percepção, principalmente quando as poderosas agências de informação desejam que a pobrezada ocupe apenas o lugar de paisagem popular, de populacho, longe do alcance de seus pedestais.
Mas penso eu que o jogo está virando, porque as oportunidades restritas à mínima população de alta renda, como ler livros e ir ao teatro, estão perdendo a pomposidade atribuída pelos elitistas, e chegando à população pobre periférica de forma humana e encarnada. O significado restritivo de cultura está se enfraquecendo e cedendo lugar a outro, mais abrangente e profundo. Trata-se da cultura que diz respeito à produção e fruição simbólica, às experiências das mais corriqueiras às mais singulares, e ao fluido de vivências e interações humanas cercadas de significação.
Partindo dessa concepção, meus olhos ficam mais atentos às coisas que acontecem aqui na quebrada, o rolê nos bailes funks e shows de forró brega, às festas, ao movimento geral da rapaziada fazendo barulho e convidando o povo a ir ao sarau, ao teatro na rua, ao combate do pessoal do hip-hop. Concluo, enfim, que eu não tenho cultura — eu vivo a cultura. Sua substância se manifesta nas práticas coletivas, na troca de saberes, no intercâmbio de signos, e chega com força na nossa cabeça, tem forte efeito na consciência sobre nós mesmos e sobre o mundo. Repare que, pensando dessa forma, não é possível classificar o povo de cultos, incultos, intelectuais, ignorantes etc. porque aqui a cultura não é uma escala que define grau de instrução, mas sim o conjunto de ações humanas produtoras de significados para sua vida prática, recreativa e reflexiva.
Qual é a importância de eu contar todas essas coisas para você? Talvez nenhuma, desde que você seja uma pessoa que não se intimida com o discurso do “ler mais para ser mais” ou que não reproduza o juízo de valor do “culto distinto”. Mas, se você faz assim, se liga e dá vazão às suas experiências culturais como elas merecem; elas são um caldeirão cheio de gente, ações e ideias, à espera do seu mergulho; caldeirão este em que a expressão não é estática como as qualidades de ser ou não-ser, mas sim uma coisa fluente e dinâmica como o movimento de deixar-se afundar em uma porção fervilhante de interesse humano.

26 de junho de 2015.