Missa da Terra sem Males

28 de setembro de 2011 0 Por Gilberto Araujo
Missa da Terra Sem Males

Texto: Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra
Música: Martín Coplas
Gravação em cassete: Edições Paulinas Discos, São Paulo 1980.
Apresentação

Memória e Compromisso

Os cristãos estamos habituados a reconhecer e a celebrar somente os mártires que outros nos fazem. Ignoramos tranqüilamente os muitos mártires que nós fazemos.
Aquí, no Brasil, 1978 foi “Ano dos Mártires” da Causa Indígena. Celebravam-se trezentos e cinqüenta anos dos tres Mártires Riograndenses, Roque González, Afonso Rodriguez e João Castilho. O CIMI -Conselho Indigenista Missionário- achou que era de justiça que não se celebrasse apenas a morte dos tres missionários jesuítas. Porque os mortos eram muitos mais. Devia-se também celebrar a morte de milhares de índios, sacrificados pelos Impérios Cristãos da Espanha e Portugal.
Uns e outros, Mártires da Causa Indígena. A Cruz, no meio deles todos. Aqueles, morrendo pelo amor do Cristo. Estes, massacrados “em nome” do Cristo e do Imperador:

… mártires indefensos
pelo Reino de Deus feito Império,
pelo Evangelho feito decreto de Conquista.
Vítimas dos massacres que ficaram com nome glorioso
na mal contada Historia,
na mal vivida Igreja…

(“Proclama Indigena”)

As Ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul, “monumento-ferida em desafio”, são o testemunho central do intento missionário das “Reduções Indias” dos Jesuítas, nos séculos XVII e XVIII. A famosa República dos Guarani, que mereceu os elogios insuspeitos de Voltaire e de Montesquieu. Essas Ruinas são também o testemunho constrangedor da barbárie dos cristianíssimos colonizadores ocidentais, nossos avós espanhois e portugueses. Sepe Tiaraju, luzeiro na testa, “São Sepé” para a fé do Povo, corregedor da Missão de São Miguel e o mais ilustre chefe guerreiro guarani, foi assassinado, juntamente com outros mil e quinhentos companheiros, pelos Exércitos de Espanha e de Portugal, irmanados na hora da barbárie. Nos campos de Caiboaté, dia 7 de fevereiro de 1756. Nessas Ruínas históricas e nesse Ano dos Mártires da Causa Indígena, nasceu a idéia da Missa da Terra- sem- males.
Pensou-se, primeiro, numa Missa “missioneira” em torno as Missões dos Sete Povos Guarani. Assim me pedia o irmão marista Antônio Cechin, gaucho “arrependido”, revisador da Historia “mal contada”, cronista apaixonado da caminhada do Povo, catequista da Libertação, também perseguido “no Templo e no Pretorio”.
Eu cultivo a convicção de que América Latina -América Amerindia, mais na raiz- ou se salva continentalmente ou continentalmente se afunda. Seu passado de cativeiro é um saque continental. Continental deve ser a marcha de seu futuro de libertação.
Os Povos Indígenas do Continente, alem do mais, tão diversificados em sua cultura e em suas realizações, foram reduzidos, pelos Povos Conquistadores, a categoria anónima e arrasada de “Indios”. Conhecidos como Indios apenas, como Indios foram depredados e confinados aos manuais e as vitrines. Sua Memória, então, devia ser celebrada numa só Missa, una e comum, um Sangue só e uma igual Esperança: a Missa Amerindia.

Eu sou América, sou o Povo da Terra,
da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar…
Do Colorado,
de Tenochtitlan,
do Machu-Pichu,
da Patagônia,
do Amazonas,
dos Sete Povos do Rio Grande…

Os Guarani, filhos da grande nostalgia, buscadores incansáveis da “Terra-sem-males”, dariam o utópico tom político e também escatológico. A Terra-sem-males, que a mística guarani secularmente vem procurando, num êxodo comovente, é uma Terra possível, o dever fundamental da História Humana, a tensa alegria de nossa Esperança em Jesus Cristo, o Senhor Ressuscitado, o Novo Céu e a Terra Nova que o Pai Deus jurou dar a seus filhos.
Eu, missionário, espanhol -no caso, ser catalão não fez diferença-, diria minha parte de contrição, em nome da Espanha colonizadora e em nome da Igreja missionária. Pedro Tierra -entranhável pseudónimo de Hamilton Pereira da Silva-, brasileiro telúrico e vítima heróica da Repressão neo-colonizadora, diria sue parte, em nome do Brasil, com a força irada de seus homens novos. E Martín Coplas, argentino, descendente de quechua e aymara -pseudônimo com sabor de alma musical popular e que carrega o respaldo prócero de Martín Fierro- diria, em solfa, em varias músicas aborígenes do Continente, a parte mais profunda. Por Martín falariam outra vez as flautas dos Andes emudecidas e o amedrontado tambor do coração de seu Povo.
O mais, a História ja o contou, bem ou mal. Os Museus exibem-no com sacrílega passividade. E os novos Impérios -nacionais e multinacionais- da cobiça da terra, madeira, minério e mão-de-obra barata- continuam a executá-lo, perante os olhos impassíveis da Civilização Ocidental Cristã.
Verdade é que a última palavra ainda está por dizer:

“América Ameríndia,
aínda na Paixão:
um dia tua Morte
terá Ressurreição!”

Esta Missa ja escandalizou a alguns. E não apenas à TFP, (Tradição, Família e Propriedade) que a tachou de “sacrilega” e “blasfema”. (Falando em TFP e Causa Indígena, lembro-me daquela charge que explica tudo. O Indio pergunta ao heraldo da TFP, que pregona pelas ruas, estandarte em alto, sua ordem conservadora:
“O TFP, tu vai defender também meu Tradição, meu Família e meu Propriedade…?”
Imagino que escandalizará tambem a alguns dos meus nostálgicos patrícios. Foi cantada tão belamente a epopéia hispánica da Descoberta da América! (“Llevaban la Espiga y la Rosa / y los Mandamientos y el Ave María…”).
O etnocentrismo e o lucro capitalista -e todo tipo de egoísmo pessoal, étnico ou econômico-impedem entender e assumir não apenas esta Missa, mas toda Missa. Porque toda Missa verdadeira escandaliza necessariamente. A Missa é sempre uma ruptura, um Sacrificio, uma Passagem libertadora da Morte para a Vida: PASCOA.
Os cristãos primitivos tinham uma consciência mais clara do risco que significava celebrar a Ceia Pascal do Senhor, aquela “memória perigosa”.
Para nós -cristãos menos lúcidos ou menos honestos- a Missa tem sido, por tempo demasiado, um sossegado espetáculo litúrgico a que se assiste passivamente e com o qual se cumpre uma prescrição eclesiástica. Por tempo demasiado viemos passando pela Missa como se passa por um coquetel social, sem nos marcar a vida com o Sangue da Aliança, sem abrir mão da nossa segurança egoísta em favor do Reino da Liberdade. Fechados num clima contraditoriamente “católico”, que nega o Ecumenismo e a autêntica Catolicidade, que desconhece, de fato, o valor universal da Encarnação do Filho de Deus e sua Oblação em prol de todos os irmãos dispersos. Neste clima, os Indios, evidentemente, não têm nada a fazer numa Missa…
A revista missionária “Sem Fronteiras”, cenário de uma pequena polêmica em torno a Missa da Terra-sem-males, pediu-me que mediasse no assunto. Isso fiz com uma simples carta, da qual são os parágrafos seguintes:
“Acredito na missão que foi a vocacão de Jesus, que e essência da Igreja, no dizer do Vaticano II. E me sinto herdeiro dos missionários de ontem -de seus pecados e de seus méritos. O “nós” da “Memória Penitencial” da Missa e um nós eclesial, coletivo. Que cristão pode negar, que cristão não deve assumir reparadoramente os erros cometidos ontem e hoje pela Igreja de Jesus, às vezes com a melhor boa vontade?
Os homens erram e os cristãos continuam humanos. Paulo repreendeu a Pedro por tentar acobertar a transmissão da cultura judaica na transmissão do Evangelho livre de Jesus Cristo. Foi em nome da Civilização Ocidental, chamada de “cristã”, que os Conquistadores, acompanhados dos Evangelizadores, destruiram de fato, nao apenas Culturas mas Povos inteiros. Segundo estatísticas sérias, dentro das várias opiniões, o Brasil, na época da conquista, teria cinco milhões de Indios… Hoje tem cento e oitenta mil. Devo julgar o passado pelos olhos que hoje tenho. Antropologicamente, teologicamente. O que não significa culpar as intenções dos homens do passado. Se não pudessemos julgar assim, nem adiantaria estudar a História nem caminhariamos. O Novo Testamento é um juizo do Testamento Velho, feito pelo próprio Filho de Deus.
Perder a terra, perder a língua, perder os costumes, é perder o chão da vida, deixar de ser. Deixar de ser aquele Povo e, geralmente, deixar de ser mesmo. Quem não respeita uma Cultura, quem age etnocentricamente, “escraviza”, sim. O Evangelho é Fé, não cultura. O Evangelho deve se encarnar em todas as Culturas de todos os Tempos. Todas elas humanas, todas susceptíveis de um aperfeiçoamento superior: a Graca do Verbo, encarnado nelas.”
Acredito que a Missa da Terra-sem-males seja ortodoxa. Os quase quarenta bispos que participaram de sua primeira celebração, na catedral da Sé, de São Paulo, no dia 22 de abril de 1979, não reclamaram, muito pelo contrário. A Missa respeita o esquema litúrgico. Não é um oratório apenas, menos ainda um “show”. É um texto musical e recitado, que ambienta e traduz indigenisticamente a Celebração Eucarística real.
Apaixonadamente, isso sim. Por ser a gente o que é e porque, no dizer do teólogo evangélico francês Georges Casalis, um escrito teológico -ou litúrgico ou pastoral- sem paixão, ja não mais refletiria a prática, a morte e a vida de Jesus de Nazaré.
A Missa tem dois momentos maiores, como textos indigenistas: a “Memória Penitencial” e o “Compromisso Final”. A Memória, num diálogo entre América Amerindia e a coletiva conscência de nossa Civilização -colonizadora, missionária. O Compromisso, alternando trágicas referências históricas, algumas bem recentes, com o grito coletivo e compungido da Comunidade celebrante: “Memória, Remorso, Compromisso!”
Através da Missa toda, a Morte do Cristo e sua Ressurreição, sua Páscoa pessoal já completa, contrasta-se com a Páscoa Amerindia, carregada de mortes, mas “ainda sem Ressurreição”. Toda a Missa, entretanto, vem traspassada de uma incontida Esperança, contrariamente ao que alguém quis entender. Traspassada também de um inevitável compromisso político, que torne acreditável e eficaz, agora e aquí, essa Esperança, escatológica em última instância.
A Missa invoca seus Santos: do lendário Montezuma até o missionário João Bosco, fuzilado, a meus pés, pela Polícia Militar, na delegacia de Ribeirão Bonito. Um canto emocionado à Mãe Padroeira da América define aquele espírito continental de que antes falei, a vontade de convocar, de congregar todos os Povos do Continente, numa só marcha de Libertação:

Morena de Guadalupe,
Maria do Tepeyac,
congrega todos os Indios
na estrela do teu olhar,
convoca os Povos da América
que querem ressuscitar.

No mais, o que importa é celebrar comprometidamente a Missa, toda Missa, comprometendo-se com a Causa dos Povos Indígenas, com a Causa-raíz da América. E viver e se “des-viver” por encontrar a Terra-sem-males e construí-la imediatamente, dia após dia, e espera-la ainda sempre, contra toda esperança, e anunciá-la fidedignamente com o limpo testemunho da própria existência.
Guarani de Deus todos nós, um dia a alcançaremos.
“Uirás ” sempre a procura
da Terra que virá,
Maíra nas origens,
no fim Marana-tha!”

Pedro Casaldáliga
São Félix do Araguaia, MT

A Missa da Resistência Indígena

A Missa da Terra-sem-males começou a brotar sobre a pedra das ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul. Terra de fronteira entre a América espanhola e portuguesa, estas duas Américas que são uma só. América dividida pelo fogo dos conquistadores.
O templo semidestruído de São Miguel é um monumento testemunho do massacre do Povo Guarani, testemunho da resistência e da grandeza dos Povos Indígenas de toda a América. As pedras escurecidas pelo fogo e pelos séculos narram com seu terrível silêncio a passagem dos bandeirantes, a devastadora passagem dos exércitos de Portugal e Espanha.
A própria História da Resistência dos Povos Indígenas aos conquistadores gestou no sangue esta Missa da Terra-sem-males. A marcha dos Povos Indígenas do Continente, buscando seu próprio rosto, sua identidade, arrancou dos massacres sepultados pela história oficial toda a força de sua esperança num Continente libertado.
Quem busca sua identidade volta-se necessariamente para o passado. Para extrair dele o metal das armas que empunhará na construção do futuro. Neste poema vulcânico, a América mergulha suas raízes na terra-mãe-ameríndia e retira dela a seiva elementar que nutre o sonho e a marcha de seus filhos.
A Missa da Terra-sem-males é uma missa de memória, remorso, denúncia e compromisso. Ela nos atira no rosto esta realidade fatal: de todos os continentes escravizados -Asia, Africa e América- a América e o único que não retornará a seus filhos. Não se trata de sonhar o impossível sonho de uma América puramente índia. Trata-se de constatar a inenarrável violência com que os conquistadores saquearam este Continente.
A Asia se levanta e seus filhos a terão um dia. Os povos negros da Africa reconquistam palmo a palmo o Continente devastado pelo colonialismo. A América, contudo, jamais retornará as mãos dos povos indígenas, sepultados pelos massacres de Cortez, Pizzarro, Valdívia, Raposo Tavares. Devorados pelas minas de Potosí, escravizados pelas bandeiras, exterminados em todo o Continente pela peste que o branco trouxe no sangue. Sem retórica, cabe dizer que os conquistadores Ingleses, Espanhois e Portugueses se lançaram sobre o Continente americano como uma malta de saqueadores, reduzindo a escombros tres impérios riquíssimos e exterminando, num espaço de quatro séculos, cerca de noventa milhões de índios.
A Missa da Terra-sem-males brotou em terra Guarani, o Povo-aliança da América India. No centro do Continente, os Guarani foram duplamente submetidos. O conquistador, português ou espanhol, converteu a terra guarani em campo de batalha até a destruição completa de tudo quanto representasse trabalho humano ou humana aspiração.
Contra toda a violência, contra todo o sangue derramado, o Povo Guarani foi capaz de sonhar a Terra-sem-males. Nao foi um “Ceu-sem-males”, foi uma Terra-sem-males, a utopia possível. A utopia construída pela luta de todos os oprimidos. A pátria libertada de todos os homens.
Poderia ter sido um poema, uma cantata, mas nasceu missa. Porque é impossível separar a historia dos Povos Indígenas da América da presença da Igreja entre eles. A mesma Igreja que abencoou a espada dos conquistadores e sacramentou o massacre e o extermínio de povos inteiros, nesta missa se cobre de cinza e faz sua própria e profunda penitência. A penitência por si só não conduz a nada, nem sequer alivia a responsabilidade histórica que a Igreja assumiu ao lado do branco colonizador. Contudo, a História marcha e a Igreja mantém um laço profundo com os oprimidos da América. Que esta penitência contribua para que este laço se converta em compromisso com a marcha do Povo a caminho de sua libertação.
A Missa da Terra-sem-males so se apossará de toda a sue dimensão quando alcançar sua vestimenta continental. É profundamente significativo que ela tenha sido escrita em português, idioma deste Brasil-quase-continente, oprimido e instrumento de opressão, gigante e escravizado, historicamente empregado de seus irmãos, vítimas do mesmo saque, combatentes da mesma resistência.
A Missa da Terra-sem-males é uma convocação a todos os oprimidos da América que marcharam durante séculos e marcha hoje em busca da Terra-sem-males libertada.

Pedro Tierra
Goiânia, 8 de outubro de 1979

Leia a missa completa aqui