Bethânia e seu blog de poesias: uma questão moral
17 de março de 2011Você deve ter visto que nesta edição do Informativo Ôxe! utilizamos uma música cantada pela Maria Bethânia como inspiração para a edição deste mês. Se não viu, confira aqui. Muito provavelmente, deve ter visto também toda a polêmica gerada pela aprovação do projeto da cantora pelo MinC para captação de R$ 1,3 Milhão. A singela quantia será usada para lançar e manter por um ano um vlog em que todo dia a Bethânia vai aparecer em um vídeo declamando uma poesia. A aprovação do projeto na Lei Rouanet permite que os proponentes do projeto (no caso a Quitanda Produções Artísticas, da própria Bethânia) possa oferecer, em contrapartida ao valor aportado pela empresa, 100% de abatimento do imposto de renda (pois é um projeto de audiovisual). Em resumo, a empresa vai poder pegar parte do imposto de renda que deveria pagar e aportar (ou investir) no projeto da Bethânia, fortalecendo sua imagem institucional (da empresa, não da Bethânia) com propaganda e o valor simbólico que isso traz. Só pra não ficar dúvidas: é imposto devido, logo é dinheiro público; pertence ao estado, não à empresa. Como a música dela foi nossa inspiração para esta edição e agora ela fez a cagada de se envolver nessa polêmica, de um modo ou de outro, me senti no dever moral (que acho que foi o problema nesse caso todo) de comentar o fato.
Para entender o problema
Se você não viu, veja aqui a reportagem da Folha falando sobre a aprovação do projeto do blog de poesias da Bê (pra simplificar, afinal somos íntimos :o). Aqui você vê a Nota de Esclarecimento do MinC sobre a aprovação do projeto.
Quer entender um pouco mais o problema da Bê fazer uso desse incentivo, dê uma conferida neste divertido post do Imprença. E pra tentarmos dar uma equilibrada na balança: 1-) a dissecada do projeto da Bê no Implicante, mostrando as discrepância orçamentárias do projeto (e olha que o MinC fez eles diminuírem o valor final do projeto) e 2-) A Renata Corrêa defendendo a Bê (e se defendendo) neste post.
Se você acha que é a primeira vez que artistas de renome fazem uso de recursos e incentivos fiscais para suas produções confira aqui e aqui (ambos na Folha). Isso já deu tanto pano pra manga que o Antônio Fagundes, por exemplo, se negou (acertadamente) a não fazer uso desse recurso, confira aqui.
Pra mim o cerne do problema são as pessoas que estão envolvidas. A Bê não precisa de maiores explicações, né? Acredito que não é preciso explicar quem é a figura nem as inúmeras relações que ela tem com inúmeros medalhões do mainstream musical brasileiro. Basta dizer que ela é irmã do Caê (somos todos íntimos, na verdade :o). Acredito também que não é preciso mostrar como o mero uso de seu nome, por si só, pode abrir diversas portas e gerar inúmeras “oportunidades de negócios”. Mas se você não sabe nada disso, veja quem ela é, por exemplo, aqui.
A outra figura dessa história é Andrucha Waddington (que será o diretor dos vídeos da Bê lendo poesia) que dentre outras coisas foi diretor de “Casa de Areia”, “Eu, Tu, Eles” e especiais musicais como o “Ao Vivo Lá em Casa” do Arnaldo Antunes para a Natura Musical e VH1. Fora isso o cara já dirigiu comerciais para a Ipanema com a Gisele Bundchen, pra Cultura Inglesa, Especial do Gil com o Dominguinhos e mais recentemente lançará o filme “Lope”, que você pode conferir o trailler abaixo.
Qual é o ponto mesmo?
Eis que me fiz valer desse extenso post e desse monte de link pra dizer simplesmente o seguinte: O mundo precisa de poesia? OK. Seria legal termos um vlog de poesia, com poesias todos os dias? OK (inclusive já existem alguns). Seria mais legal se a Bê colocasse a cara lá, dando mais valor e significado ao projeto? OK. Seria bacana também ter um cara com toda a experiência e qualidade do Andrucha Waddington? OK. Seria legal empresas apoiarem esta iniciativa? OK É legal pagar um puta salário, pra valorizar os profissionais envolvidos? OK. Seria legal usar recursos públicos para fazer isso? Vai pra Punta del Este, meu chapa!
A grande questão, na minha opinião, é que essa gente aí não precisa disso. O próprio projeto não precisa disso. Fazer uso do incentivo federal para conseguir viabilizar este projeto é uma puta sacanagem com a população e com o próprio público da Bê. O mecanismo em suma foi criado, no meu entender, para incentivar produções que de outro modo não teriam viabilidade para sua execução e nos quais o “mercado” não tem interesse comercial. Não é o caso da Bê e seus parceiros. Mas, como não poderia deixar de ser, sempre há os espertalhões que procuram distorcer ou se enfiar nas brechas do sistema para aliviar sua barra na época das vacas magras. Pra mim este é o caso. O mercado fonográfico está em decadência? Os DVDs não tão vendendo? Cobra-se duzentos paus em um ingresso e ainda assim estamos no vermelho? Simples, vamos montar um projeto pra Lei Rouanet e enfiar essa conta naquela parte da anatomia da população! E dane-se se vamos comer uma puta faixa do limite disponibilizado para projetos incentivados pela Rouanet, mesmo sem precisar, e o projeto do Seu Fulano, cirandeiro, lá em Cabrobó da Serra ficar sem financiamento. Inclusive, até isso é interessante, pois quanto menos “Seus Fulanos” existirem, mais cult eu vou parecer quando cantar uma ciranda no palco, longe do público e do real significado da ciranda, cobrando ingressos de duzentos paus, pra pagar as minhas excentricidades e maluquices, além de todos os meus “bróders”, é claro.
Some-se a isso que até outro dia não tínhamos sequer uma previsão para os pagamentos EM ATRASO das centenas de Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil, nem dos prêmios e outros incentivos federais (veja aqui). Entendo que, no modelo de lei que temos hoje, o MinC não pode se negar a avaliar e aprovar um projeto baseado apenas no fato da pessoa ter renome ou não. Entendo que isto seria uma espécie de discriminação dentro dos mecanismos públicos que de modo algum pode ser aceita. Entendo que eles agiram dentro do que rege a lei. Por isso, acredito que o problema de fato é o modelo que temos da lei de incentivo e a falta de vergonha na cara desses produtores e artistas (afinal, são no mínimo coniventes) que pretendem usar dinheiro da população para pagar o geriatra e comprar as oferendas do santo.
A sinistra teia de relações e brodágens entre essas pessoas do mainstream e de órgãos no governo facilitam as pressões para aprovação dos projetos e o aparecimento de bizonhices como essa aí. Fora isso, a crise que passa a indústria da música, a medíocre visão de que o que é do Estado não é de ninguém e a maldita “lei de Gerson” que infelizmente ainda marcam presença na consciência coletiva brasileira, criam o cenário perfeito para que os espertalhões da “Cultura”, da “Brasilidade” e da pretensa “Música Popular Brasileira” possam, na maior cara de pau, tentar nos convencer de que é legítimo a Bê e seus bróders usarem 1,3 Mi para fazerem seu blog de poesias, cujo material em última instância ainda será propriedade deles! Ou alguém viu alguma parte no projeto onde fala que os vídeos serão disponibilizados sob a Creative Commons, domínio público ou alguma licença do gênero? Eu não vi. Logo, os vídeos serão propriedade da Bê e seus bróders e se você quiser fazer uso deles em seus projetos terão que pagar royalties pra trupe toda.
Particularmente, acho decepcionante alguém do quilate da Bê se prestar a um papel deste. É como se o Sílvio Santos entrasse com um pedido no Bolsa Família. Diga-se de passagem, de novo. Ela e seus bróders não precisam disso e tenho certeza que qualquer coisa que eles venham a fazer (muito pelo nome que construíram) tem o tal “valor de mercado”, o suficiente para pelo menos não ficar sem o caviar e a casa na praia. Ao contrário de outras tantas iniciativas que lutam e fazem das tripas coração para se manterem com a cabeça fora da lama que os espertalhões dos bairros nobres de São Paulo e Rio ajudaram a criar. Ainda assim, sustento nossa decisão de ter se inspirado na frase da música, mais pelo que significa e por tudo o que aquele Maria Bethânia de alguns anos atrás representava. Tudo passa e infelizmente não temos como prever o que as pessoas vão fazer, que cagadas vão cometer, nem se perdem ou não o pouco de coerência e sensatez que tinham. E enquanto isso, naquela cidadezinha incrustada na borda da grande São Paulo, a população vai tocando, aos trancos e barrancos, dentre tantas dificuldades, na Saúde, na Educação e em todo o resto, enquanto outros pensam que é errado “vender sua arte”. Vai nessa…