O Estigma da Loucura e a Perda da Autonomia

12 de julho de 2013 0 Por Gilberto Araujo
Alfredo Naffah Neto

Psicólogo; Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo _ USP;
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_ PUC; Professor-Titular da PUC-SP, vinculado ao Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Clínica

O presente ensaio tematiza o estigma da loucura e a
perda de autonomia que sofrem todos aqueles
que recebem a sua marca. Inicia seu percurso reflexivo analisando um conto de
Gabriel García Márquez,
desloca-se em seguida para as memórias de Haim Grünspun, do Hospital Franco da
Rocha, o Juquery,
e para relatos de experiências psiquiátricas alternativas _ no caso, a Clínica
Laborde, no Vale do Loire,
França. Através dessas fontes, procura descrever o processo através do qual o
louco perde a sua condicão
de sujeito para a sociedade a qual pertence e o papel que desempenha a
psiquiatria nesse processo.
Utiliza, nesse debate, citações de Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da
Rocha e Ângela Nobre
de Andrade, além de García Márquez e Haim Grünspun.


UNITERMOS _ Sujeito, doença mental, moralidade e
psiquiatria




Gabriel García Márquez, num de seus Doze Contos
Peregrinos,
intitulado “Só vim telefonar” (1), dá-nos uma das
mais belas descrições literárias do estigma da loucura e da conseqüente perda
de autonomia que ela impõe a quem recebe sua marca. Vale a pena deter-nos nessa
criação literária e analisar os paradoxos que ela traça e explora, num limite
que beira as raias do absurdo.

Maria de la Luz Cervantes, a personagem central, é
uma atriz mexicana, casada com um prestidigitador de salão, a quem acontece o
acidente imprevisível de ter o carro quebrado na estrada, numa tarde de chuvas
primaveris. Ao fazer sinais na estrada, em busca de socorro, surge mais um
imprevisto: o único veículo que atende ao seu sinal e pára, para lhe dar uma
carona, é um ônibus estranho, repleto de mulheres sonolentas, todas envoltas em
cobertores. Maria ainda não sabe, mas acaba de entrar num ônibus que carrega as
loucas de um hospício; sabe ainda menos que essa é uma porta que possui somente
entrada, nenhuma saída.

Enrola-se num cobertor e adormece; quando o ônibus
chega ao seu destino, Maria nota coisas estranhas: ao tentar chegar ao
edifício, um guarda manda-a entrar numa fila. Quando pergunta por telefone,
respondem-lhe de um jeito dissimulado: “Por aqui, gracinha, o telefone é
por aqui”, como que seguindo aquele velho preceito de que não se deve
negar nada a um louco, confrontando-o diretamente.

É evidente que, no interior do hospício, não
encontram o nome de Maria na lista das pacientes e que a enfermeira-chefe
estranha que ela não leve a identificação num cartão costurado no sutiã, como
todas as recém-chegadas, mas isso naquele contexto não significa muita coisa:
se ela estava no ônibus do sanatório é porque é uma paciente, identificável ou
não. Ou seja, no interior de um hospício os códigos identificatórios seguem um
sistema rigorosamente binário: ou se é funcionário ou se é louco; como Maria
não é funcionária, segue-se que… “Como é o seu nome?”, pergunta-lhe
a superiora. Ela dá o seu nome e acrescenta: “É que eu só vim para
telefonar”. Como resposta, recebe um condescendente: “Está bem,
beleza, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas
agora não, amanhã”. Resposta que transfere para um amanhã, incessantemente
prorrogado, a promessa de contato com o mundo exterior.

Isso significa que, ali, a palavra de Maria não
vale pelo que diz, que _ para aquela gente _ seu discurso possui apenas valor de
sintoma. Sua afirmação: “É que eu só vim para telefonar” pode
significar duas coisas: ou que está em pleno delírio, ou que está tentando um
estratagema ingênuo para fugir do hospício; nunca que veio, de fato,
para telefonar. Afinal, quem se desloca até um hospício _ normalmente cercado
de muros e portões _ para telefonar? Evidentemente, as suas testemunhas
possíveis _ o motorista do ônibus e a mulher que lhe deu o cobertor, quando
entrou no veículo _ a essa hora já estão fora de circuito; além do mais, quem
iria se lembrar exatamente como tudo aconteceu? O fato é que ao entrar naquele
ônibus Maria tornara-se uma louca, perdendo a autonomia no instante
exato em que recebia, como uma marca em fogo, o estigma da loucura. Esquirol,
com a sua psiquiatria moralista, dizia que: “Existem alienados cujo
delírio é quase imperceptível; não existe um no qual as paixões, as afeições
morais, não sejam desordenadas, pervertidas ou anuladas….” (2). Seguindo
este preceito é preciso, pois, todo o cuidado para não se deixar enganar por
eles, porquanto todos têm o pensamento perturbado, sofrem de desordem na
maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre
(3).

Na esteira desse código, os funcionários do
hospício não se deixarão seduzir por Maria, seus delírios telefônicos, suas
súplicas. Se até então o único indício de sua doença era o fato de ter entrado
no hospício com as outras pacientes, as suas reações frente ao regime
manicomial _ tentativas de fuga, horror e descontrole emocional diante do que
vê _ logo criarão outros indícios, estes sim, “inquestionáveis”.
Tanto assim que logo recebe inscrição, número de série, um comentário
superficial sobre o enigma da sua procedência e uma qualificação, escrita à mão
pelo diretor: agitada. A marca da doença está ratificada, consumada.

A grande maestria de García Márquez, nesse conto,
consiste em ir alinhavando um conjunto de circunstâncias, de acasos, e em fazer
com que, na sua articulação, também casual, eles produzam um destino
inexorável; um pouco como nas tragédias gregas. Dentro dessa proposta
literária, é proposital que a personagem em questão não possua um marido muito
preocupado com as suas andanças e sumiços; já tendo sido abandonado por ela
outras vezes e tendo sérias desconfianças de que ela o trai com um jovem
“consolador de aluguel de mulheres casadas”, o Mago Saturnino acaba
por se convencer de que esse sumiço significa mais um dos abandonos dessa
mulher de gênio irascível e sexualidade descontrolada. Assim, quando Maria,
após muitos sofrimentos _ e aproveitando-se de um descuido dos funcionários _
consegue finalmente chegar a um telefone e ligar para o marido, dizendo-lhe:
“Coelho, minha vida”, recebe como resposta um
sonoro:”Puta!” e o telefone desligado. Ocorre, então, a sua segunda
tentativa de fuga, jogando-se contra o vitral do jardim e caindo banhada em
sangue. Se antes já fora amarrada por punhos e pés à cama, agora é arrastada ao
pavilhão das loucas perigosas, “acalmada” com uma mangueira de água
gelada e com injeção de terebentina nas pernas, para que a inflamação não lhe
permita caminhar. Assim, Maria só vai conseguir avisar o marido do seu destino
quando aceita as seduções sexuais da guarda da noite, Herculina, em troca do
favor do telefonema.

Mas é evidente que quando o discurso de Maria _
como o de todos os loucos _ perde credibilidade, essa potência da qual é
despojada desloca-se para alguém: a figura do médico, o único intérprete
credenciado,
detentor da “verdade” do louco,
portanto, de um poder absoluto sobre ele. A exibição desse saber/poder
aparece no diálogo do diretor do hospício com o Mago Saturnino, logo depois de
sua chegada para visitar Maria: “A única certeza é que o seu estado é
grave”, diz o diretor. “Que esquisito”, replica Saturnino,
“sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio”. “Há condutas
que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem. Porém, é uma
sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem
mão forte”, conclui o diretor, como um grande sábio ao finalizar a explicação
para um leigo, um não-iniciado.

E o Mago Saturnino _ como todo mundo _ acredita na
palavra da autoridade. Afinal, quem pode entender melhor de “condutas
latentes que explodem sem mais nem menos” do que o médico? É
evidente que a palavra da autoridade vem, aqui, se amoldar a todas as dúvidas
que Saturnino sempre teve sobre o gênio descontrolado de Maria, com todas as
suas idas e voltas. Finalmente, aparecia uma figura que, com autoridade e
credibilidade inquestionáveis,
propunha-se a controlar o gênio
irascível e imprevisível de Maria, a curá-la do mal dessas
“condutas latentes que explodem” de repente e deixam a gente sem
saber o que fazer. O desejo inconfesso do Mago Saturnino _ controlar os
arroubos de Maria _ realizar-se-ia, pois, através do diretor do hospício.

Restava ainda _ para confirmar as palavras do
diretor _ o desespero total de Maria, a “explodir” numa conduta
descontrolada quando percebe que seu marido, o único que poderia libertá-la,
também fora capturado pelo sistema. “Então”, escreve García Márquez,
“agarrou-se ao pescoço do marido, gritando como uma verdadeira louca. Ele
safou-se com todo amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou
sobre as suas costas” (4). Observe-se aí a expressão “gritando como
uma verdadeira louca”, que descreve a transfiguração de Maria naquilo que
uma conjunção de acasos transformara num destino: finalmente, ela encarnava a loucura.
Mas não a loucura “essência natural”, oriunda de algum mau
funcionamento biofisiológico; essa loucura fora produzida socialmente,
construída parte por parte, detalhe por detalhe. Sua gênese histórica jazia em
dois acasos: seu carro ter-se quebrado na estrada, numa tarde de chuvas, e ela
ter pedido carona a um ônibus desconhecido.

Mas quantas avarias nós todos não enfrentamos ao
longo do tempo e em quantos ônibus desconhecidos não nos metemos pela vida
afora? Por que, então, não nos tornamos também loucos? Este percurso reflexivo
só nos permite uma resposta: por mero acaso.

O conto de García Márquez tematiza a condição do
louco, o estigma dessa marca e a conseqüente perda de autonomia que ela
implica. Poderíamos resumir essa condição numa só frase: o louco perde _ para a
sociedade a qual pertence _ a sua condição de sujeito, no sentido
etimológico do termo: sub-jectum, aquele que subjaz às ações, às
enunciações do discurso. Desde o instante em que a marca da loucura lhe foi
imputada, é como se no lugar do sujeito aparecesse a doença mental; então,
o discurso e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias,
tornando-se apenas sintomas da doença. Julgado incapaz de decidir sobre
o seu destino em todas as instâncias, que vão desde a liberdade de locomoção
até as decisões sobre a forma de tratamento que recebe, o louco é transformado
num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico.

Nas suas memórias sobre o Juquery, o
Hospital Franco da Rocha, quando ainda era um médico-estagiário, Haim Grünspun
nos conta o caso da mulata Judith, internada com “psicose pós-parto, num
quadro confusional muito grave e que melhorou após um tempo de tratamento”
(5). O médico mandou-a, então, para casa, durante uma semana, após o que
deveria voltar ao hospital para ser reavaliada e se decidir sobre sua alta. O
que Haim nos relata é a conversa que ouviu entre ela e o marido, na viagem de
trem em que retornava para essa avaliação. Retomo, em seguida, alguns
fragmentos dessas falas, para exemplificar o que estou denominando perda
da condição de sujeito.


“Minha Santa, não precisa se afligir tanto.
Você está bem. Eu vou explicar tudo direitinho ao médico, e ele vai dizer que
você está curada”. “Você viu como consegui cuidar do nenê e que
até o seio eu dei para mamar e que não precisei de socorro de ninguém, que saí
sozinha, que fiz compras, dei banho na menina e no nenê e nem tua mãe ficou
alarmada e ficou até admirada com o que eu consegui fazer?”
“Mas
é lógico, minha Santa, igual como você sempre fez e nunca se importou nem com o
julgamento de tua mãe nem com a ranzinzice e resmungos da minha” “E
você conta para o doutor que posso até ficar sozinha sem a ajuda das velhas.
Que não tem perigo de eu ficar nervosa como fiquei (…). E se eu precisar de
choque outra vez, se o médico achar que falta ainda para eu me curar? Acho que
não agüento ficar mais naquele pavilhão. Eu soube que tinha gente que vinha uma
vez por semana só tomar o choque e voltar para casa. Você fala com o doutor,
que você me traz e que você pode perder um dia por semana o trabalho, para me
trazer (…). Você conta para ele que dormi todas as noites…”
e a
conversa continuava, no mesmo tom ansioso, de alguém que tinha perfeita
consciência de que a sua palavra perdera todo o valor, de que seria
necessário o testemunho do marido para convencer o médico da sua cura.
“Não preciso dizer nada, minha Santa, acho que basta você falar com o
médico. Não preciso fazer a sua defesa. Você não é acusada de nada. 

Você só
esteve doente e agora está ficando boa”, conclui o marido, procurando
questionar a sua posição de ré. Mas Judith sabe que, uma vez recebida a marca
da loucura, o seu fantasma nunca mais desaparece: “Viu, mesmo você, que
gosta de mim, acha que estou ficando, não disse que já estou”.
Ou seja, ela percebe que tudo o que o marido testemunhara não era suficiente
para convencê-lo completamente da sua cura. Quando ele responde, confirma a
suspeita da mulher de que a última palavra cabe ao médico: “Mas
eu não sou médico, por isso é que nós vamos ao médico. Você é que não está com
confiança. Eu confio muito”. O final da conversa é patético: Judith
percebe que, apesar da presença e solidariedade do marido, encontra-se irremediavelmente
nessa tentativa de resgate da sua condição de sujeito: “É
verdade, a empreitada é minha, eu é que vou falar. Não vou sucumbir ao medo,
não vou me abater como covarde. Não vou fazer alarma, não vou gritar, não vou
chorar. Vou simplesmente contar como passei desde o dia que saí, e ele, se
quiser, que acredite”.

Algumas questões podem ser colocadas a partir daí.
A primeira delas _ de caráter filosófico _ é até que ponto a condição de
sujeito não é, em si mesma, uma ficção. Nietzsche, por exemplo, considerava a
postulação do sujeito como “uma simplificação para designar,
enquanto tal, a força que aloca, inventa, pensa, por oposição a toda alocação,
invenção, pensamento” (6). Essa consideração cai como uma luva no âmbito
da teoria das forças, que caracterizou o terceiro período dos escritos
nietzschianos e que interpreta o mundo microscopicamente, a partir dos
múltiplos campos de força que o constituem e lhe dão forma a cada momento. Dentro
desta concepção, qualquer ação humana é produzida não por um sujeito autônomo,
mas pela conjuntura singular de forças, a maior
parte delas inconscientes, que articulam o desenrolar do devir humano. A
postulação do sujeito torna-se, então, apenas uma questão gramatical, uma
ficção criada por certas estruturas de linguagem. Entretanto, em momento nenhum
Nietzsche desconhece que, ficção ou não, ela seja uma forma de interpretação
de mundo
ou, mais do que isso, que seja a forma de interpretação
dominante
no mundo contemporâneo _ aquela que fundamenta a existência das
leis, dos códigos penais e da própria categoria do cidadão, para os quais é
indispensável a idéia de um sujeito responsável pelos seus atos. Que é,
portanto, através desse código interpretante que os direitos civis de
alguém podem ser cassados ou restituídos. É, pois, nesse âmbito que se deve
interpretar a perda da condição de sujeito pelo louco, problema mais de caráter
político do que ontológico ou cosmológico.

Outra questão que pode surgir, esta de cunho
psiquiátrico, é se, de fato, a loucura não priva o ser humano da sua capacidade
de julgamento, de tomar decisões, portanto da sua condição de sujeito. Seus
argumentos são a existência de delírios, alucinações, que _ por ocasião dos
surtos _ colocam o louco numa incapacidade para distinguir entre o falso e o
verdadeiro, a fantasia e a realidade. Conclui perguntando se essa condição não
justifica todo o confinamento e tutela do louco, geridos pelo
poder/saber médico. Contra esse argumento, sempre é possível se invocar, como
testemunha, experiências como a empreendida pela Clínica Laborde, criada por
Jean Oury e Félix Guattari _ entre outros _ no Vale do Loire, França. Lá, como
em toda instituição, pode-se encontrar pacientes em diferentes estados, com ou
sem delírios, alucinações e outros tipos de sintoma. Entretanto, funciona
sempre como uma comunidade aberta, autogerida, onde os pacientes se misturam
aos estagiários e aos funcionários, onde as divisões de trabalho seguem as
preferências e as possibilidades de cada um, onde há total disponibilidade de
circulação pelos vários ambientes: cozinha, enfermaria, sala de refeições, sala
de TV, biblioteca, ateliers, etc. 

Onde, enfim, estimula-se o contato com
a alteridade em todos os níveis. Como comenta Nobre de Andrade, a
partir de um estágio realizado nessa clínica: “Essa vivência do insólito
(daquilo que não está capturado pelo nosso código representacional e
identitário) está presente na nossa vida e podemos lidar com ela de duas
formas: acolhê-la ou negá-la. Não precisamos estar em contato com psicóticos
para vivermos `isso’, mas, nesse contato, experenciamos essa `insolidez’ de um
modo mais forte. A tendência da sociedade é negar essas vivências ou, quando
isso não é possível, enquadrá-las numa doença chamada loucura, tornando-as
ainda mais ameaçadoras. A beleza de Laborde está exatamente em nos permitir
acolher esse insólito, vivê-lo como algo transformador, que abre passagens,
traz à tona afetos até então desconhecidos. Afetos que apontam para aquilo que
temos de mais bonito e criativo: a nossa potência de viver a vida em sua
plenitude, acima e aquém dos códigos aprisionantes. A sensação de `suavidade’
(7).

É, de fato, um clima de liberdade e solidariedade
que passa através dos seus relatos: “Fui motorista do furgão (transporte
para aqueles que moravam em Blois e freqüentavam a Laborde como hospital-dia)
diversas vezes e nunca me esqueço da primeira vez: “eu estava muito
ansiosa, pois nunca tinha dirigido um carro grande como aquele; é claro que
todos os `maluquinhos’ sentiram e perguntaram logo se era a primeira vez que eu
dirigia aquele carro. Confirmei. Imediatamente começaram a me acalmar, dizendo
que eu estava indo muito bem, que eu era boa na direção, etc. Além dos elogios,
agradeciam muito, como se eu estivesse fazendo um grande favor (havia uma falta
crônica de motoristas para o furgão). Eu gostava muito de fazer aquelas
viagens…Era sempre o mesmo grupo de pessoas e rolava um afeto gostoso ali
dentro daquele carro… Eu já sabia onde deixar cada um… E as conversas (e
silêncios) eram suaves e aconchegantes. Às vezes, após deixar o último
passageiro na estação, eu me sentava num restaurante à beira do Loire para
beber um copo de vinho… Fim de tarde e o pôr do sol… Realmente, não dá para
sair imune de tudo isso” (8).

Também no seu contato com pacientes de Laborde,
Nobude Andrade _ com paciência e persistência _ sempre descobria alguma forma
possível de contato, de forma de humanidade a ser partilhada: “Do outro
lado do extenso gramado em frente do castelo, eu encontrava sempre o Felipe.
`Meu grande-pequeno preferido Felipe’. Ele passava horas e horas agachado ali,
brincando com seus bichos de pelúcia, suas bonecas Barbies, seus bichinhos de
plástico, etc. Contaram-me que ele corria para lá mesmo quando nevava….E
corria mesmo! Eu o via sempre atravessar aquele gramado, correndo naquele seu
jeito torto, em direção aos seus brinquedos, levando nas mãos uma jarra de café
e um pote de bloquinhos de açúcar… Eu não entendia como tudo aquilo não caía
no chão… O Felipe dormia no parque (…). A minha aproximação (…) foi
difícil e, muitas vezes, frustrante. Eu ficava atrás dele… Rodeava-o…
Sentava do seu lado no gramado… Mas ele não parecia notar a minha presença. E
quando se dirigia a mim, eu não entendia o que falava. Esse contato começou
pelo cigarro. Era a única coisa que eu entendia: quando ele me pedia `um
Marlboro’. Mas algo vai acontecendo sem você se dar conta e, de repente, lá
estava eu, sentada ao lado de Felipe, num banco do jardim, `conversando’.
Literalmente, conversando… Não me perguntem sobre o que conversávamos… Não
sei. E não importa. Importa que, entre outras coisas, eu consegui entender que
ele gostava de música e lhe disse que adorava uma música de Jacques Brel, `Ne me
quitte pas’. E Felipe cantou a música inteira para mim…”(9).

A partir desse único exemplo pode-se constatar que
mesmo pacientes que seriam considerados psiquiatricamente bastante
comprometidos pela ciência acadêmica vigente podem viver num clima de liberdade,
autonomia e consideração mútua, dependendo apenas de que se lhes respeite a
condição de seres humanos. Não se trata absolutamente de tingir a
loucura com cores românticas: sem dúvida, são pessoas que vivem experiências
difíceis, doloridas, dilacerantes, experiências que _ na maior parte das vezes
_ não encontram uma alocação possível na esfera gregária do sujeito e que
resistem às formas de comunicação pelos códigos partilhados. Mas que, nem por
isso, são menos humanas, menos passíveis de reconhecimento e de solidariedade.

Pela genealogia traçada por Foucault _ e já
inaugurada por Nietzsche, antes dele _ o grande problema da psiquiatria é ter
se tornado, desde os tempos de Hoffbauer e Esquirol, no início do século XIX,
uma disciplina moral. Esquirol avaliava o grau de sanidade e
loucura dos seus pacientes pelas suas afeições morais. Se eram
“desordenadas”, “pervertidas”, isso era sinal de alienação;
já a cura significava “a volta às afeições morais dentro dos seus justos
limites, o desejo de rever seus amigos, seus filhos, as lágrimas de
sensibilidade, a necessidade de abrir seu coração, de estar com sua família, de
retomar seus hábitos” (2). Na história da psiquiatria brasileira, Franco
da Rocha foi talvez um dos mais fiés discípulos dessa ciência moralista. Para
atestar isso basta ler os seus preceitos: “Há indivíduos, e contam-se por
legiões, que não são declaradamente loucos nem de mentalidade perfeitamente
normal: são os degenerados que, gradativamente, sem linha bem definida,
estabelecem a transição entre o louco e o são de espírito” (10). “Ao
grupo de degenerados vêm juntar-se, muito naturalmente, os desclassificados da
sociedade. Denominamos desclassificados a uma série de tipos especiais que não
cabem nem na sociedade nem no hospício (…). Eles estão na rua, por toda
parte. Agite-se um pouco a sociedade por qualquer motivo, e eles surgirão logo.
São candidatos constantes ao hospício” (11). “Os revolucionários são
os companheiros dos paranóicos, com os quais se confundem muitas vezes, com a
diferença de que os paranóicos revelam perturbações intelectuais que os excluem
mais depressa da comunhão social, por darem mais na vista de todos” (12).
“O sonho de grandeza do criminoso, ora oculto, ora bem claro, revela-se
por demais evidente nos anarquistas e nos magnaticidas. A egofilia nestes, não
tendo derivação na arte, como soe acontecer com o poeta, expande-se nas
ruidosas manifestações contra a moral vigente, contra a lei, contra
tudo”(13).

Uma psiquiatria dessa índole está, sem dúvida, mais
perto da política do que da medicina ou da psicologia _ e da política
reacionária, que funciona como leão de chácara das classes e culturas
dominantes para a manutenção do status quo. É pois, desse mesmo Franco
da Rocha, que podemos ouvir as seguintes advertências: “A liberdade,
quando se trata de doidos, não pode deixar de ser muito relativa. A preocupação
de evitar o aspecto de prisão, de dar ao asilo a aparência de habitação comum,
tem sido um pouco exagerada por alguns alienistas. O caráter de prisão é, no entanto,
inevitável: quando não estiver nos muros e janelas gradeados, estará no
regímen, no regulamento um tanto severo, indispensável para um grande número de
doentes. Esse regime, porém, não impedirá o gozo de ampla liberdade aos que se
achem em condições de usufruí-la. Um bom asilo deve ter secções diversas, nas
quais a liberdade se gradue pelo estado mental dos pensionistas. O excesso de
zelo pela liberdade dos loucos pode facilmente degenerar em futilidade”
(14).

Então, fico pensando: quem sabe, por um desses
acasos da vida, o Dr. Franco da Rocha não andou pelo México, quem sabe não era
ele o chefe do hospício onde foi parar Maria de la Luz Cervantes, o mesmo que
conversou com o Mago Saturnino? Ou, então, quem sabe Gabriel García Márquez não
se enganou: a atriz não se chamava Maria de la Luz Cervantes, mas Maria da
Silva, o país não era o México, mas o Brasil, e o hospício não era o Juquery? Vai
saber…

Abstract _ Madness
Stigma and Loss of Autonomy
The main subject of this
study is the madness stigma and the loss of autonomy, suffered by those who are
marked by it. The author begins his reflections by analyzing a story written by
Gabriel Garcia Marquez, then the memories by Haim Grünspun of the Franco da
Rocha Hospital (“Juquery”), and the reports on psychiatric
alternative experiences, such as in the Laborde Clinic, in Loire Valley,
France. Using these sources, the author describes the process through which an
insane person looses his/her condition as an individual for the society in
which he/she belongs, as well as the role played by psychiatry in this process.
In this debate, the author utilizes quotations of
Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da Rocha and Ângela Nobre de Andrade, in
addition to Garcia Marquez and Haim Grünspun.

Referências
  1. Márquez GG. Só vim
    telefonar. In: ______. Doze contos peregrinos. trad. Eric Nepomuceno. Rio
    de Janeiro: Record, 1992.
  2. Esquirol. Citado em Foucault
    M. A casa dos loucos. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
    1979: 121.
  3. A prática de internamento
    dos loucos, no começo do século XIX, coincide, segundo Foucault, com um
    momento em que a loucura passa a ser concebida menos como uma perturbação
    de julgamento, uma forma de erro ou de ilusão – que, enquanto tal,
    permitira a convivência com o louco sem grande perigo, até então – e mais
    como uma perturbação no eixo paixão-vontade-liberdade, ou seja, como
    perturbação das afeições morais. É precisamente isso que a torna perigosa
    para a sociedade, passível de confinamento. Foucault M. Microfísica do
    poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  4. Márquez GG. Op. cit. 1992:
    123.
  5. Grünspun H. Mulata Judith.
    In: Trem para o hospício. São Paulo: Cultura, 1980: 73.
  6. Nietzsche F. Fragmento
    póstumo 2[152], outono de 1885 – outono de 1886. In: ______. Oevres
    philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1978. v.12: 142.
  7. Andrade AN. A angústia
    frente ao caos: um estudo genealógico da formação do psicólogo clínico
    (tese de doutorado). São Paulo: PUC, 1996: 104.
  8. Andrade AN. Op.cit. 1996:
    106.
  9. Andrade AN. Op.cit. 1996:
    108-9.
  10. Franco da Rocha. Esboço de
    psiquiatria forense. Citado em Cunha MCP. O espelho do mundo: Juquery, a
    história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986: 51.
  11. Franco da Rocha. Causas da
    loucura. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 51.
  12. Franco da Rocha. Contribuition
    a l’étude de la folie dans la race noir. Citado em Cunha MCP. Op. cit.
    1986: 52.
  13. Franco da Rocha. Do delírio
    em geral. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 52.
  14. Franco da Rocha. Hospício e
    colônias do Juquery. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 88.
Endereço
para correspondência:
Rua
Consórcio, 75 – Vila Olímpia
04535-090 São Paulo – SP

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