Depoimento Ara Pyau

Arapyau depoimentos

[tabs]
[tab title=”André Arruda”][accordions]
[accordion title=”Ensaio 05 de Dezembro de 2011″ load=”hide”]
Arapyau depoimentos

Ensaio 05 de Dezembro de 2011

É curioso ver tanta sabedoria e experiência em pessoas tão simples. E o curioso não pelo fato dessa simplicidade, mas porque, de certa forma, já sabíamos que justamente nessas culturas ancestrais é que encontraríamos tais demonstrações e, mesmo assim, perdemos tanto tampo e energia em coisas ínfimas.
Para mim, este processo tem sido um reencontro com minhas raízes que, não sei como explicar, tenho visto nas pessoas da aldeia. No seu jeito tranquilo de falar, de movimentar-se, de contemplar a vida e transmiti-la em sua intensidade, com poucas palavras.
Que esta nossa busca possa nos render muitos outros frutos, além de nosso sonhado espetáculo, com o qual, tomara, tocaremos pessoas com a poesia da cultura Guarani, mas que em nós, em cada um, saibamos carregar para a vida um tanto dessas vivências e cultivá-las em nosso mundo. Que o ARA PYAU se dê em nós! Tudo está ligado.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio 13 de Janeiro de 2012″ load=”hide”]

Certa vez, a título de experiência, o Sol deixou o seu, para vivenciar o nosso Sistema. Contam que, nesse dia, assim que surgiu, fez ficar feliz um menino. Então, o Sol resolveu voltar atrás, assim que percebeu que estava nascendo para uma criança pobre.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio 20 de Janeiro de 2012″ load=”hide”]

Hoje, ao final do ensaio, onde tivemos a oportunidade de ler o texto do Zé Geraldo, que servirá de roteiro para nosso futuro espetáculo, e depois de tudo que conversamos, das ideias todas que foram despertadas a partir de então, me ficou a sensação de que estamos trilhando o caminho certo (se é que, realmente, o errado existe).
É bom estar com essa sensação, pois, agora muito mais concretamente, a cada ensaio, vislumbraremos o trabalho ficando pronto. Estamos passando, me parece, das fundações e alicerces, para o levantamento das paredes. Continuemos, mãos à obra!!![/accordion]
[/accordions][/tab]
[tab title=”Fabia Pierangeli”][accordions]
[accordion title=”Visita na aldeia | 01 de Dezembro de 2011″ load=”hide”]
compoema_arapyau_fabia_depoimento
Visita na aldeia | 01 de Dezembro de 2011

Mais um dia na aldeia. Dia de muitos encontros – Pedro, Eunice, Poty Poran, D. Jandira, Sr. José Fernandes. Ouvimos histórias, fizemos perguntas, entregamos presentes pros caciques/pajé, emprestaram-nos livros, DVDs e pen drive, aprendemos a primeira brincadeira que uma criança guarani aprende.
Dia intenso, como todos os outros que temos passado lá. Adentrar outra cultura é algo intenso, que mexe com a gente.
“Nhanderu criou os homens, indígenas e não indígenas e desde o princípio foi dito que os não indígenas seriam maioria e teriam mais riquezas, os indígenas sempre souberam disso.”
“Antigamente, no começo de tudo, o homem se comunicava com a natureza, depois foi esqucendo disso. Hoje em dia já não sabe mais. Os guaranis ainda conseguem entender a natureza, se comunicam com ela através dos sonhos.”
“Os cachorros são sagrados pois enxergam as coisas que a gente não enxerga, eles nos protegem e espantam as coisas ruins.”
Resistência, liberdade, espiritualidade…
Crianças, muitas crianças…
Cachorros, muitos cachorros…
Terra vermelha, tupi guarani, precariedade, falta de estrutura…
Uma mistura de encantamento e indignação me preenchem…[/accordion]
[accordion title=”O povo invisível que vive no pé da montanha | 20 de janeiro de 2012″ load=”hide”]

Fazia tempo que ouvia falar de um povo que vivia no pé de uma montanha, próxima da montanha onde vivo. Diziam que era um povo que vive no Brasil há milênios e que já foi gigante, mas que com o passar dos anos foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, diminuindo… Eles ainda existem, espalhados Brasil afora, nos pés de algumas montanhas, mas poucas são as pessoas que conseguem enxergá-los. Tentei procurar informações a respeito deles na internet, mas achei muito pouca. Tentei perguntar pra pessoas mais velhas, que moram há mais tempo que eu nessa montanha que hoje habito e as respostas foram as mais diversas: “Ixi… eles não existem mais não.” “Existiram há muito tempo, mas hoje em dia, só na imaginação das pessoas.” “É um povo que preza muito a natureza.” “Tem gente que diz que já viu, mas eu não acredito nisso não.” “Existem uns poucos espalhados por aí, mas quase nunca são vistos.” “Estão quase desaparecendo porque são muito preguiçosos.” “Existir até existe, mas logo acaba. Esse povo não gosta de trabalhar não, quer tudo na mão”. “Se você caminhar uns 30 km na direção sudoeste e olhar fixamente pra sua esquerda, pode ser que você consiga enxergar.” “Eles vivem todos pelados.” “Quase ninguém enxerga eles porque eles tem o poder de se camuflar com a terra.”
Todas essas informações e “diz-que-me-disse” foram me deixando confusa e muita curiosa. Quanto mais eu ouvia a respeito deles, mais vontade de caminhar rumo ao sudoeste eu sentia. Ensaiei, ensaiei, calculei – se uma pessoa anda mais ou menos 6 km por hora, se eu caminhar bem, chego lá em umas 5h – olhei a previsão do tempo, fiz uma lista de coisas que devia levar pra essa viagem, tomei coragem e defini o dia. Comentei com a minha mãe e ela me perguntou porque é que eu queria ir atrás desse povo, que era pra eu pensar bem e que se eu realmente decidisse ir, pra tomar cuidado, pois ela tinha ouvido dizer que mesmo tendo diminuído muito eles ainda conseguiam aprisionar pessoas como nós pra escravizar ou pra comer. Senti medo, mas respirei fundo e disse pra ela que eu iria, que eu sentia que eu precisava chegar nesse povo e tentar enxergá-los, que eu queria conhecê-los pra tirar minhas próprias conclusões. No dia marcado, levantei junto com o sol, tomei um café da manhã reforçado, peguei minha mochila e parti. Caminhei, caminhei, caminhei e quando cheguei no pé da tal montanha, não consegui enxergar nada. Rodiei ela toda umas duas vezes.
Cansada e decepcionada resolvi sentar embaixo de uma árvore pra descansar e voltar pra trás. O sol estava quente. O dia muito iluminado. Sentei, abri minha mochila, bebi um pouco de água e fechei os olhos. Nesse momento ouvi uma pulsação distante, uma pulsação externa que batia no mesmo ritmo do meu coração. Meu coração acelerou e quanto mais eu me concentrava no som, mais forte ele pulsava. Tentei identificar, ainda de olhos fechados, a direção que o som vinha e quando identifiquei, abri os olhos, olhei fixamente pra direção do som e como num sonho, foi aparecendo na minha frente uma vilinha tamanho miniatura, parecia de brinquedo.
Meu coração batia cada vez mais forte e o som da pulsação também tinha aumentado e se juntado a outros sons, transformando em melodia com chocalhos, instrumentos de cordas, de sopro e vozes que cantavam palavras que eu não entendia. Tomei coragem, levantei e caminhei em direção aquilo que via. A cada passo a vilinha ia aumentando de tamanho e quando cheguei bem perto, ela já estava imensa. Respirei fundo e entrei, aquela música me atraia. O tempo suspendeu.
Ruas de terra vermelha me guiavam. Casas de madeira margeavam as ruas e no centro da vila uma casa maior, com duas pequenas portas de entrada de onde saia muita fumaça. Uma das portas estava aberta. Lentamente me aproximei, ainda com receio, espiei. Tinha muita gente lá, as pessoas cantavam, dançavam, fumavam cachimbo, bebiam chimarrão, comiam. Homens e mulheres, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Todos festejavam. Entrei e quando dei por mim, aquela música já me fazia dançar. Dancei e quando dei por mim estava bebendo chimarrão. Bebi e quando dei por mim tinha na mão um pedaço de pão. Comi e quando dei por mim pitava a fumaça de um cachimbo diferente e bonito. Pitei e dancei, comi de novo, bebi, cantei e quando dei por mim, mesmo sem nunca ter ouvido aquela língua eu já entendia tudo o que eles diziam e eles diziam coisas que eu sempre quis dizer.
Senti uma alegria que nunca tinha sentido antes. Mesmo sem nunca ter visto aquelas pessoas, parecia que os conhecia desde sempre. Nos olhávamos e nos reconhecíamos. O dia passou, a noite passou e só me lembrei que tinha que voltar pra casa quando o dia amanhecia novamente. Não queria voltar. Queria continuar ali, dançando, cantando, compartilhando. Pensei em pedir pra ficar mas no mesmo instante que pensei um senhor colocou as mãos no meu ombro. Eu virei e ele me disse olhando nos meus olhos, como se pudesse enxergar a minha alma: “Está na hora de voltar pra sua casa”. Senti vontade de chorar.
Ele colocou uma das mãos na minha cabeça, com a outra, pitou seu cachimbo e me defumou. Senti vontade de abraçá-lo e ainda olhando nos meus olhos ele completou: “Você pode voltar sempre que quiser, sempre que ouvir o chamado”. Ele sorriu. Eu retribui. Mais uma vez respirei fundo e caminhei em direção a porta. Olhei pra trás. Eles ainda cantavam, dançavam e eram felizes.
De novo senti vontade de chorar, mas agora era vontade de chorar de alegria. Eu ia, mas podia voltar. Voltei pra minha casa e de tempos em tempos, sinto meu coração bater forte, no mesmo ritmo daquela música que conheci naquele dia. Quando sinto isso, sei que é o chamado. Volto pra lá e me fortaleço, dançando, cantando e sendo feliz.[/accordion]
[accordion title=”Cerimônia de Batismo | 24 e 25 de janeiro de 2012″ load=”hide”]

Chuva. Terra molhada. Dia de festa.
Fomos convidados a participar.
Casa de Reza.
Aglomeração de gente. Calor. Fogueira. Muita fumaça. Olhos ardendo. Suor escorrendo. Cheiro de fumaça impregnando.
Gente, muita gente.
Povo Guarani.
Muitos “jurua kueri”.
Tudo no seu lugar.
Colchão pras crianças. Fogo que alimenta o “petinguá”. Água que repõe o suor perdido. Os homens cantam e dançam, as mulheres acompanham. As crianças observam atentamente, ajudam no ritual, acompanham também. TODOS fumam. A fumaça defuma tudo e todos, purifica pessoas e objetos.
O “mbaraka miri” marca os passos, o violão e a rabeca propõem a melodia para as vozes que aos poucos vão explodindo e tomando conta da “Opy”.
Eles cantam, eles tocam, eles dançam.
Os homens, de um lado pro outro.
As mulheres, pra frente e pra trás.
As vozes parecem amplificadas e aquelas figuras pequenas e tímidas, viram gigantes entoando suas canções.
Água, terra, fogo e ar. Os quatro elementos ali, exaltados. A água purifica e batiza, o fogo que alimenta os cachimbos, que faz as comidas ficarem prontas. A terra conectada pelos pés, o ar que brinca com a fumaça o tempo todo.
Algo de mágico acontece. Há quanto tempo será que isso acontece, se repete?
Fomos batizados. O “xeramoi” José Fernandes nos presenteou com nomes Guarani. Agora também em chamo RETÉ, que significa Vida.
O “mbaraka miri” soa forte e os pés pedem pra marcar seu ritmo.
O corpo se movimenta e pede pra cabeça desligar, mas ela não desliga. O corpo quer ir, a cabeça não deixa.
Observei mais do que eu queria. Eu queria me entregar mais para aquela experiência, mas tive receio e nem sei bem do que. Queria ter dançado mais, queria ter cantado, pitado o “petingua”, tomado o chimarrão.
Dancei um pouco, comi tipá, bebi café, ganhei um nome, conheci Djerá – liderança da aldeia Tenondé Porã, uma Guarani com sentimentos feministas. Dei mais alguns passos dentro desse complexo universo, tão diferente e destoante do meu. Me senti feliz por ter tido a oportunidade de observar a alegria desse povo que veio pra Terra pra cantar, dançar e ser feliz.[/accordion]
[accordion title=”Índio? | 08 de abril de 2012″ load=”hide”]

Índio? Quando eu era pequena, pensava que índio não existia, era personagem do Folclore Brasileiro. Que até já tinha existido, mas como não existia mais, precisava ser homenageado no dia 19 de abril. E durante todo o período que frequentei a escola, sempre que chegava o mês de abril lá vinham as atividades pra homenagear o índio brasileiro: cocar de cartolina, desenho pra pintar de indiozinho pelado com pena na cabeça e folha de bananeira pra esconder as partes íntimas, danças com saia de papel crepom embaladas por música da Xuxa ou da Mara Maravilha, guache na cara e por aí vai… Terminei o ensino médio em 1997 e dentro da escola, nunca ouvi uma palavra que desmistificasse esse meu pensamento.
Alguns anos se passaram e quis o destino que eu me tornasse educadora. Já na universidade vi cair por terra inúmeras “verdades” que tinham me ensinado, dentre elas que o Brasil foi descoberto por acaso por Pedro Álvares Cabral, que pensando ter chegado às Índias, chamou as pessoas que aqui viviam de índios. E não é que até hoje nossas crianças continuam aprendendo a História do Brasil assim? Não, o Brasil não foi descoberto, ele foi invadido, colonizado. Os povos que aqui viviam foram violentamente subjugados e essa simples inversão de fatos se reflete numa série de equívocos e preconceitos que até hoje, 512 anos depois, ainda assolam os povos indígenas brasileiros. Dizer que o Brasil foi descoberto, absolve e engrandece seu descobridor. Joga pra debaixo do tapete toda a violência com que nos saquearam. Nossos colonizadores nos roubaram, materialmente e espiritualmente.
Antes dos portugueses chegarem por aqui, essas terras, sobre as quais vivemos hoje e que faz parte dessa nação chamada Brasil, era habitada por diversos povos nativos. Portugal nos “descobriu” e se sentiu no direito de explorar todas as riquezas que por aqui existiam, nos roubaram tudo o que podiam, inclusive o direito de termos uma cultura milenar e de trilharmos nosso próprio caminho.
Sou brasileira e como tal, sei que meu sangue é uma mistura de muitos sangues, sei que além do negro e do branco, minha árvore genealógica também traz em seus troncos a ascendência indígena. Sinto muito por ter demorado tanto a descobrir isso. Sinto por ter acreditado por tanto tempo nas mentiras que insistem em nos ensinar nos livros didáticos, nos programas de TV, nas escolas, nas igrejas… Sinto muito por ter demorado tanto a entender que Índio Brasileiro realmente não existe!
Sim, aquele índio que mora numa oca no meio da floresta, fala tupi, vive da caça, do plantio e da pesca, acredita em Tupã, tem um filho curumim, anda pelado e pinta o corpo, não existe, é um estereótipo.
E pra continuarmos essa conversa e acabar de vez com esse estereótipo, apelo pro dicionário… Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, índio é: Elemento químico metálico (símbolo In), de número atómico 49 = ÍNDIUM. E indígena: 1. Que ou aquele que é natural da região em que habita. = ABORÍGENE = AUTÓCTONE, NATIVO; 2. Que ou quem pertence a um povo que habitava originalmente um local ou uma região antes da chegada dos europeus = ABORÍGENE; 3. Natural de um país ou localidade.
Portanto, a partir de agora, continuo esse texto me referindo aos povos indígenas brasileiros. Segundo dados do IBGE, atualmente existem em nosso país mais de 200 povos indígenas, que falam mais de 180 línguas diferentes e vivem de forma completamente diferente um do outro, espalhados por todo o Brasil. A maior concentração desses povos está nas regiões Norte e Nordeste, mas eles também vivem nas outras regiões, em aldeias ou nas cidades.
Por incrível que pareça, na cidade de São Paulo, grande centro econômico do nosso país, existem 3 terras indígenas e uma delas fica no bairro do Jaraguá, há menos de 30 km de Francisco Morato. Uma comunidade Guarani Mbya, com cerca de 600 pessoas, que resiste, com seus cultos e tradições em frente ao Parque Estadual do Jaraguá. Quem passa em frente às aldeias Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, dificilmente se dá conta de que ali se vive de um jeito diferente. A primeira vista é só mais uma comunidade pobre, amontoada dentro de uma pequena área com quase nenhuma infraestrutura, casas feitas com restos de madeira, banheiros coletivos, com suas crianças e cachorros a brincar na beira da Estrada Turística do Jaraguá. Porém, aqueles que se permitirem enxergar para além das aparências e adentrar os muros daquela comunidade, deixando pra fora tudo o que “aprendeu” até ali, pode se deparar com deliciosas descobertas.
Em outubro de 2011, pisei pela primeira vez na terra vermelha e sagrada que abriga aquele povo. De lá pra cá, toda vez que vou lá, aproximadamente uma vez por semana, por conta do projeto “Ara Pyau – contando histórias, trocando saberes”, do Teatro Girandolá e do qual faço parte; sinto-me presenteada por “Nhanderu Papa Tenonde” (Deus Pai Primeiro, dos Guarani). Para aqueles que sempre reproduziram a frase “Os índios de hoje em dia já estão todos aculturados”, se referindo aos povos indígenas brasileiros, não fazem ideia da grande besteira que estão dizendo. Sim, a maioria deles se veste como “Juruá” (não indígena), compra comida no supermercado, possui celular, câmera fotográfica, filmadora, TV, computador, navega na internet, tem perfil no facebook, fala português com certa facilidade, pega trem, ônibus e é bombardeada o tempo todo pelas mesmas bombas do sistema capitalista que atingem todos os seres humanos desse planeta, mas a despeito de tudo isso, a forma como lida com todas essas coisas, difere muito da forma como nós, “juruás”, lidamos.
As aldeias, Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, além de preservarem a língua e os rituais Guaranis, passados de geração em geração há séculos (e esse talvez seja o traço mais forte e marcante dessa comunidade), também encaram sua passagem por esse mundo de uma maneira bastante distinta da nossa. O povo Guarani é um povo muito espiritualizado e celebrativo, que canta e dança pra reverenciar seus ancestrais, pra espantar os maus espíritos e atrair os bons, pra conversar com Nhanderu, pra agradecer pelo pão de cada dia. Eles tem um “Xeramoi”, o grande avô, líder espiritual e a essência da aldeia, que nós conhecemos como pajé. Gostam da chuva, prezam pela vida em comunidade, pela sabedoria dos mais velhos, pela autonomia do outro, inclusive das crianças. Eles acreditam e buscam a “Terra sem males”. Eles acreditam que devem devolver pra natureza, tudo o que dela consomem, entendem que tudo está ligado e que tudo o que é vivo, faz parte de uma mesma família. O sol, a água, a terra, os animais, as estrelas, as árvores, o fogo e os homens, são todos parentes. Eles acreditam que a educação se dá por meio da observação e da vivência, que o ser humano aprende a medida que vê o outro fazendo e se arrisca a fazer também, através da tentativa, erro e acerto, cada um a seu tempo. (Qualquer semelhança com o filme Avatar, não deve ser mera coincidência).
Entrar numa “Tekoa” (aldeia), é adentrar um templo sagrado. Lá, o tempo é outro, bem diferente desse nosso tempo louco e corrido. Lá, existe espaço para a contemplação e celebração da vida, para o cultivo do sagrado, para a reflexão acerca da história brasileira e da formação de seu povo, para o exercício da identidade indígena, a despeito de toda a discriminação que esses povos enfrentam, diariamente e historicamente. Os povos indígenas brasileiros existem sim e são seres humanos, de carne e osso, como eu, você e seu vizinho. Eles não são meras ilustrações dos livros didáticos ou simples personagens dos romances brasileiros. Eles são nossos irmãos, brasileiros e guardadores do que existe de mais ancestral na nossa cultura, fazem parte dos povos originários da nossa nação e estão simplesmente esquecidos.
Eles já não tem mais espaço pra plantar, já não tem mais autorização pra caçar e precisam brigar judicialmente pra terem direito a um pedaço de terra. As demarcações de Terras Indígenas levam anos para serem legalizados e muitas vezes, depois de serem demarcadas e reconhecidas, tornam-se alvo da ganância de latifundiários que coíbem violentamente essas comunidades e tornam-se autores de assassinatos bárbaros, que raramente são punidos. Hoje, eles não tem direito a sequer um pedaço de terra onde, há muito tempo atrás, era tudo deles.
Então, neste próximo 19 de abril, não vamos comemorar o Dia do Índio, que sequer existe; mas antes refletir de modo muito verdadeiro e honesto sobre a importância e o legado de todos os povos originários do Brasil e que, além de tudo, deram nome a muitas coisas em nossa sociedade: de ruas e coisas a bairros e cidades. E, principalmente, você que, por algum motivo, vá preparar alguma comemoração, homenagem ou algo que o valha, fica o aviso: Cuidado para, mesmo com a melhor das intenções, não disseminar uma visão estereotipada e preconceituosa a respeito desses povos, desvalorizando uma cultura extremamente rica e diversificada. Quem sabe assim, como foi há muito tempo atrás possamos, de fato, dizer que todo dia é dia dos povos indígenas; os mais antigos e originais brasileiros.[/accordion]
[/accordions][/tab]
[tab title=”Gilberto Araújo”][accordions]
[accordion title=”Ensaio | 24 de novembro de 2011 Sobre a última visita à aldeia” load=”hide”]
compoema_arapyau_gilberto_depoimento
Ensaio | 24 de novembro de 2011 Sobre a última visita à aldeia

Imagens que tomam forma no corpo;
reflexos corpóreos deglutidos a muito custo:
não é tão fácil soltar as amarras de nossa cultura Juruá
tão impregnada, tão excludente e individualista
sons e cores: uma rabeca chora uma melodia terra cobre enquanto um acorde intermitente ressoa de uma violão.
Os pequenos dançam entre passos entrecortados e me intrigam
imagens e olhares que me atravessam me transportam para um estado estrangeiro
que de repente me assaltou… e me mantém em permanente vigília de mim mesmo e do nada O Guarani se instala, a língua, um bombardeio de sons nunca antes ouvidos: sou um estranho impotente
–– Que porra eles estão falando? Não tô entendendo nada – Juruá juruá juruá…. é uma revolta amargada há meio milênio difícil de esquecer.
O olhar contemplativo dos mais velhos é outro tempo, outro plano que foge à compreensão de um apenas Juruá – é um incômodo muito grande para quem está sempre refém do relógio.
O cachimbo, o fumo (talvez totem-tempo guarani) que não tem hora, é quando dá vontade, não importa o que se esteja fazendo, sempre há tempo para algumas tragadas… não nego, já fiquei com vontade de experimentar. Sei que não há nada de extraordinário nisso… mas as vezes me parece tão sagrado para eles…
E de novo TERRA, em tudo há uma terra vermelha, ocre, nos azulejos, nas madeiras, na pele, nos cabelos e olhos e uns 80% na alma, como diria Drummond: terra vermelha. O Guarani inunda nossos ouvidos uma vez mais: um labirinto sonoro – e eu, estrangeiro não entendendo uma vírgula – é o juruá que é branco, o não índio, é um consolo vazio que me torna mais estranho .
E quero mergulhar mais, me sentir menos estranho.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | 16 de Dezembro de 2011″ load=”hide”]

A cultura Guarani está em extinção. Seu Alísio está lutando há trinta anos. Ele se diz cansado. Não vê o futuro com bons olhos: “Eu confio em vocês, no teatro de vocês, para falar de nossa cultura, pra dizer pros brancos que nós não somos como os juruá nos vê”. Ele só não desiste, porque acredita nas crianças, que elas continuarão a resistir.

Do encontro de hoje, penso que este mergulho resultará num espetáculo que transcenderá os limites da aldeia Tekoa Pyau – vai muito além. Sinto que a cultura guarani com um todo e particularmente seu modo de entender as coisas, de vivenciar as coisas, a vida, no ritmo deste outro tempo, será apenas o início de um diálogo/confronto entre as duas culturas, do qual não sairemos ilesos.

Vejo como um encontro para celebrar a vida como, nós juruá, há muito tempo deixamos de fazer.

Nesse processo que ninguém está imune, nos emocionamos, nos indignamos, nos sentimos afetados tão pungentemente e tão cutucado no que temos profundamente enraizado em nós, mas que não é, seguramente, natural, que as vezes, o objeto de pesquisa se inverte e se confunde; quem está estudando quem? Não será mais uma busca de nossa ancestralidade, de entendermos o que somos, de enxergarmos em qual caminho nossos passos estão nos levando hoje?

Em nossos corações há um amontoado de um pó cinza, enquanto os guarani ainda mantem a fogueira sempre acesa na casa de reza.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | 20 de janeiro de 2012 Sobre o roteiro que o Zé trouxe” load=”hide”]

Este roteiro é um brinquedo por princípio e que nunca foi visto, porem sempre imaginado; que caiu na roda para ser compartilhado e brincado como nunca antes imaginamos. E pode ser um enigma dentro de um labirinto que dançará em nossos olhos até transbordar.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | 30 de janeiro de 2012 A Onça dos raios do sol” load=”hide”]

Há muito tempo quando o sol ainda acordava sem pressa e seus primeiros raios eram laçados pelo ponto mais alto do pico, uma sombra fria se projetava numa pequena clareira no pé da montanha, formando um curioso desenho de uma onça deitada no chão.
Aquele lugar tornou-se um ponto de partida e chegada de todo dia dos bravos homens daquela tribo, que só saiam para caçar quando a onça se deitava. Ao voltarem, agradeciam aos deuses que os protegiam e garantiam o alimento, o sol, a montanha, e a onça, com uma dança e um canto que, às vezes, pareciam rugidos que não eram vistos e ouvidos por ninguém.
Os mais velhos diziam que aquela onça deitada era a alma de um guerreiro que se deixou ser devorado por uma grande onça, para proteger seus irmãos. A partir de então, ele descia todos os dias pelos raios do sol para avisar os guerreiros caçadores da tribo se naquele dia eles tinham permissão para caçar.
Muitos amanheceres se passaram. O sol ainda brincava com o pico, ainda acordava sem susto e o canto não tinha sido interrompido na hora dança sagrada. O segredo permanecia oculto. A alma do guerreiro não falhava em sua proteção.
Até que as aparições da onça começaram a rarear. A caça ficou escassa e a fome atingiu a todos. Sem a permissão, não podiam fazer nada, além de aguardar. Toda a tribo dançava e cantava todos os dias em volta do leito da onça, clamando a volta de seu parente guerreiro e protetor.
O velho pajé entendeu que ele não voltaria mais e silenciou. Aos poucos, o canto entoado com tamanha força que fazia tremer o chão, foi enfraquecendo até se ouvir apenas o vento balançando as árvores.
E não se sabe como, nem precisamente quando, este povo deixou de existir, sem deixar vestígios de sua estadia naquele lugar.
Outros amanheceres vieram e tempos depois, outra civilização cravou naquelas terras uma cidade com suas maravilhas tecnológicas; se expandiu tanto que a mata foi atravessada por estradas de cimento, subindo morro acima, até fincarem hastes de ferro e bandeiras no topo do pico. Estava demarcado mais um ponto turístico.
Pouco se sabe o porquê daquela tribo, se instalar naquele pedaço de terra ao pé da montanha que ficou ilhado, escondido da grande civilização, entre as duas estradas. Mas lá estavam eles e, de alguma forma muitos deles sentiam algo diferente quando olhavam para o alto do pico, sobretudo o cacique/pajé. Ele sentia vontade de cantar e dançar, mas não sabia exatamente o quê nem para quê… E passou a sonhar com onças e isso durou anos.
Há alguns dias, estive na aldeia pela manhã, o cacique/pajé apareceu, sorrindo, tomado de uma paz profunda, cumprimentou a todos. Sentou a meu lado e me disse depois de um tempo: “Você já reparou como o sol bate na montanha e a sombra que faz aqui em baixo?”
Eu, sem muito entender, respondi o obvio. Ele sorriu novamente, fixou seu olhar na montanha e começou a contar esta história. Por fim, disse que o dia ainda ficaria mais quente. Não tive coragem de perguntar se ele viu o desenho da onça novamente refletido na clareira, qual seria o seu significado para esta tribo?[/accordion]
[/accordions][/tab]
[tab title=”Mariana Moura”][accordions]
[accordion title=”Visita na aldeia | 3 de Dezembro de 2011″ load=”hide”]
compoema_arapyau_mariana_depoimento
Visita na aldeia | 3 de Dezembro de 2011

Conversamos mais com a Poty Poran sobre a oficina de teatro que irá começar em janeiro. Me sinto ansiosa pra saber novas histórias, me familiarizar mais com os indígenas. Dezembro será um mês intenso na aldeia do Jaraguá, só na semana que passou fomos 3 vezes lá. Já me sinto mais a vontade.

Imagens: Alcides fazendo uma coruja de madeira e uma senhora segurando um pintinho no colo, com muito cuidado e carinho, sorridente.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | 05 de dezembro de 2011″ load=”hide”]

Sempre venho pro ensaio curiosa para o que vai acontecer, pra saber de novas descobertas, para ler, ouvir, falar e calar quando for preciso. Esse ano está sendo bem significativo, é como se eu acordasse para um novo mundo e tivesse que trabalhar com meus preconceitos e julgamentos. Sinto que esse processo será longo e difícil para todos, por mais que tenhamos só 8 meses, esses indígenas vão transformar nosso grupo. Respeito e admiração.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | dia 13 de Janeiro de 2012″ load=”hide”]

Pobreza / Questão da fome / Tentar manter a cultura através da língua / Religiosidade / Abandono / Precariedade / O índio pensa no coletivo, não no individual.
Imagens: casa de reza, música, observação da natureza, sons, cachimbo, fumaça, pés e mais sensações virão.[/accordion]
[accordion title=”Mariana Moura – Ensaio | 20 de Janeiro de 2012″ load=”hide”]
Ensaio | 20 de Janeiro de 2012

A terra sem males, a ambição do ser humano, as diferenças entre os povos e a transformação da realidade.
As injustiças da sociedade, o ritual e o pensamento indígena tão diferente da nossa realidade. Nossa cultura não dança, não festeja, os indígenas vieram com a missão de dançar e ser feliz, nada mais.
Depois de algumas anotações, me vem um roteiro, é nele que vou brincar pra descobrir mais sobre essas novas descobertas![/accordion]
[accordion title=”Cerimônia de batismo | 24 e 25 de Janeiro de 2012 Terra cheia de energia” load=”hide”]

O desprendimento é fundamental, se livrar dos problemas e tudo o que o dia a dia traz pro nosso corpo, pra nossa alma… Ir com a alma liberta, celebrar com todos o momento. Descobrir e sentir tudo o que tem de rico nessa cultura totalmente diferente da minha, entrega é a palavra. Foi nesse pensamento que me preparei para ir ao batismo indígena e vivenciar uma noite com esse povo tão simples e encantador. Horas antes eu me concentrei, mas nosso cotidiano realmente é difícil de esquecer, porém tentei me limpar de tudo.
Chegando lá senti algo no ar, diferente das outras noites, antes de entrar na casa de reza eu já sentia o cheiro de fumo, um cheiro que me instigava a entrar, entrei e me sentei, então veio uma noite única e cheia de sensações, tudo diferente do que eu já havia sentido, percebi como estou sensibilizada com essa pesquisa.
Muitas crianças, muitos líderes, muitos petynguas, muita gente, muita fumaça e muita vontade de estar ali, de se alimentar da energia contagiante que tinha naquele espaço, lugar sagrado e respeitado por todos. Foi difícil me entregar e conseguir celebrar por inteiro aquele acontecimento com eles, mas a vontade veio, principalmente nos momentos das danças.
O batizado começou, a casa de reza cada vez mais lotada de índios e juruás, depois de um tempo observando o ritual, o William veio me perguntar se eu queria ir lá na frente e receber a benção do pajé, eu não esperava por isso, foi surpreendente e quinze minutos depois eu, Mariana, passei a ser conhecida entre eles como Kunhan Ju, que segundo o Pedro significa Deusa das Estrelas, então meu mundo pequeno começou a enxergar novas possibilidades, novos cheiros, novos sabores e novos olhares.
Pela primeira vez, eu imaginei e senti um pouco da força de Nhanderu, que os moradores da aldeia sempre falam, que está presente em todas as músicas e na vida desse povo. E por mais que eu não tenha conseguido curtir aquele ritual inteiramente, a fumaça me transformou, a terra, o ar, as crianças, os cabelos, algo dentro de mim mudou.

Imagens:

– Terra com marcas dos cuspis dos petynguas
– Um lugar onde as crianças dormiam, parecia um berçário
– Panelas vazias
– Cachorros dormindo do lado de fora, como se tivessem acompanhando
– Fogueira para acender os cachimbos
– Homens separados das mulheres
– Muitas danças e força corporal
– Crianças e adolescentes seguindo a tradição[/accordion]
[/accordions][/tab]
[tab title=”Meire Ramos”][accordions]
[accordion title=”Ensaio – 05 de dezembro de 2011 Sobre ida à aldeia do Jaraguá” load=”hide”]
compoema_arapyau_meire_depoimento
Ensaio – 05 de dezembro de 2011 Sobre ida à aldeia do Jaraguá

Hoje eu percebo que já estou me acostumando a vê-los do jeito que são e o modo de vida que escolheram.

A experiência tem sido transformadora. No começo não era muito fácil ver as crianças sujas, e suas bagunças. Eu não sabia também o que era permitido falar ou fazer. Claro que ainda temos muitos receios, mas já é bem mais tranqüilo. Acho que eles também estão se acostumando com a nossa presença.

Falar com aquelas pessoas é incrível, dá vontade de ouvi-las pra sempre. O Sr. Alísio é um fofo. Muito tranqüilo. Às vezes tenho a impressão de que ele se coloca num lugar abaixo dos brancos, mesmo sem querer. Suas falas, muitas vezes, são para provar que podem fazer as coisas que os brancos fazem, como dirigir e comer de garfo e faca.
Para mim, esse pensamento é estranho, pois é claro que eles podem fazer tudo que qualquer pessoa faz, entende?… Não tem o que provar.

Tenho vontade de debater, de falar: “Não, Sr. Alísio, não precisa pensar, nem se sentir assim, o Sr. é como qualquer outra pessoa”. Mas, ainda não tenho, nem sei se algum dia vou ter essa liberdade de falar o que penso, então, tenho que me colocar no meu lugar.

Ele é muito preocupado com as crianças e jovens da aldeia. Lá eles têm uma relação de cuidado muito diferente da nossa, em todos os sentidos. Parece que todas as crianças são filhas de todo mundo, então se cuida de todos. Mas ao mesmo tempo, não se vê broncas em ninguém, as crianças são muito independentes.

A última vez que fui lá (03/12), ouvi o Alcides, o moço que é videomaker e artesão, falar sobre seu filhinho, com um tom de preocupação, a criança pela fala do pai, parecia ser pequena, entre seus 8 e 10 anos. O pai disse: “A gente não segura mais ele, ele já tomou o mundo”. É uma preocupação de pai, mas uma liberdade de guarani.

Eles são muito observadores, e esse também tem sido meu papel: Observar.
Eles tem características muitos parecidas, são tímidos, às vezes até sisudos, observadores, e quietos a princípio. Mas depois de um tempo, podemos notar que são pessoas doces, divertidas…

Dia 03 foi o dia que mais me aproximei deles, pude conhecer o quintal da casa do Alcides. Ele conversou conosco fazendo artesanato, estava fazendo uma corja de madeira. Sua família estava lá fora, menos o filho. Quando chegamos, eles já estavam lá, e lá ficaram. Sua mulher sentada ao seu lado, um cachimbo numa cadeira, eles sentados no chão, ou caixotes próximos ao chão. Havia uma senhora albina, que não sei se era mãe ou sogra dele.

Ela conversava com uma moça também albina que estava grávida. Conversavam assim, né, entre aspas… a maioria do tempo ficavam mudas. Essa senhora cuidava de um pintinho entre as mãos, e cada vez que ela o colocava no chão, ele piava até que ela o pegasse de novo. Ela gostava do pintinho, e ria pra gente mostrando o que fazia. Eu gostei dela. A “conversa” com o Alcides só foi um pretexto para que pudéssemos observar de mais perto.

Na casa/quintal tinha muitos cachorros, e embora eles tenham muitos cachorros em toda a aldeia, e isso mostra que eles gostam de cachorros, mas a relação que o Alcides e sua esposa demonstraram foi a de “passa pra lá, cachorro”. Não sei se estavam preocupados se a gente não ia gostar deles lá, ou se eles é que não queriam eles por perto, ou se, essa é a forma de gostar de cachorros.

O Pedro falou uma vez que os cachorros é que cuidam das casas, e que os cachorros vêem o que a gente não vê. Como espíritos, sejam bons ou maus.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio – 06 de dezembro de 2011 Memórias inventadas sobre uma índia albina” load=”hide”]

Uma senhora de seus 60 e poucos anos, com um jeito de criança: um olhar engraçado, inocente, e um sorriso sempre na boca. Sua pele branca, pintadinha, lembra a minha avó Teresa, mãe da minha mãe. Mas dona Margarida é loira.

Sentada com seu pintinho no colo, e seus cachorros em volta, mostra o quanto pra ela esses animais são importantes, como que da família. Cuidava do pintinho com o cuidado de um bebê. Ou como se cuida uma galinha. Se fosse pra pensar em um animal que a representasse, seria a galinha. A mãe. A que cuida: Observa o que os filhos fazem, e ri quando eles erram. Sem brigas em casa. Ela só briga para que não briguem.

Dona Margarida trabalhou muito na vida, e trabalha até hoje fazendo artesanato, e passou essa sabedoria pros seus filhos e filhas. Ela vende os artesanatos pros brancos em troca de dinheiro para comprar o alimento que hoje falta na sua aldeia. Isso a entristece, não ter o de comer.

Desde pequena passou por isso, mas ela ainda acredita que um dia chegará num lugar, ou chegará um tempo que de tudo vai ter.

Seu esposo morreu com seus filhos ainda pequenos e nunca mais ela se casou. Ela educou seus filhos pro caminho do bem.

Dona Margarida não fala o português, só algumas palavras, como “oi, bonito, dinheiro, alguns valores, colar, brinco…”, que aprendeu para sobreviver, não que quisesse.

Ela gosta de fumar seu cachimbo, e reunir seus filhos pra comer, ou pra conversar. Sempre que pode, ela gosta de estar alegre, pois acredita que ainda tem muitas coisas boas na terra, que Nhanderu não deixa ninguém acabar, como a lua que está no céu toda noite pra quem quiser olhar, na sua aldeia ou em qualquer outro canto. Por isso de noite, ela fica fora de casa, pra ver a lua, de noite ela vai até a casa-de-reza pra fumar e agradecer.[/accordion]
[accordion title=”Cerimônia de batismo | 24 e 25 de janeiro de 2012″ load=”hide”]

A princípio eu achava que o Willian não gostaria muito que nós fossemos ao batismo, ele andava muito distante da gente, e quando conversamos a respeito disso, ele respondeu dizendo que precisaria conversar com outras pessoas.
Isso me deixou apreensiva. Não sabia se os outros deixaria que fossemos ou não. O que eles nos diriam?
Logo veio a resposta. Voltamos a aldeia dois dias depois, e todos estavam mais abertos, até o Sr. José Fernandes nos cumprimentou e sentou ao nosso lado. Estava um clima bom. Quando o Willian veio conversar conosco, trouxe a resposta positiva, e também nos aconselhou a participar mais efetivamente, esquecendo a pesquisa e tudo o mais. Nos falou da importância desse ritual, e da importância de estarmos lá compartilhando desse ritual com eles.
No dia do batismo a aldeia recebeu muitos visitantes. A casa de reza estava cheia. Pessoas de outras aldeias, alguns não-índios. Muitas crianças, algumas dormindo em colchões, outras no colo de suas mães, mamando, outras no chão, prestando atenção nos discursos dos mais velhos.
Eu não entendia, eles falavam em guarani, mas acredito que estavam agradecendo a Nhanderu por aquele momento, e pela aldeia, pelo CECI, e pelas pessoas que os estava ajudando.
Nesse momento o Cheramoi José Fernandes estava dormindo, ou descansando, também em colchçao, esse atrás da fogueira, ao redor dele, muitas mulheres, que preparavam os cachimbos para os homens que estava sentados em outro espaço. Elas também alimentavam a fogueira e traziam água quente para o chimarrão.
No começo eu estava me sentindo estranha, com medo de que algumas pessoas não gostassem da nossa presença lá. Mas eles me trataram bem, umas 3 vezes pediram para que crianças se levantassem para eu me sentar. Algumas crinaças me olhavam, ouvi algumas falando “Juruá”, e eu não sabia se estavam falando de mim. Umas pegaram no meu cabelo,perguntaram meu nome, e uma me abraçou e depois sentou no meu colo, isso já foi me deixando mais a vontade, fui me sentindo mais bem-vinda.
Lá a fumaça era muita, de arder os olhos. Alguns momentos era preciso sair para sentir outro ar. Os homens primeiro. Depois as mulheres.
A fumaça era dos cachimbos, era da fogueira, das velas do “altar”. Havia uma espécie de altar, com penas, velas e água.
Como disse, no começo eu estava num estado de estranheza/receio. A cerimônia começou para mim, quando o Cheramoi apareceu ao centro, com seus colares e um cocar. Ali se instaurou outro ambiente, outra energia. Ali minhas besteiras todas se foram.
Ele disse: Todos de pé. E eu fazia parte de todos. Eu estava ali com eles.
Juntaram-se crianças, mulheres e homens na frente do altar e cantaram. Cantaram a força desse povo, que resiste ano após ano com essa cerimônia, que resiste dia-a-diacom seus costumes.
Nesse momento me veio a cabeça o que eles passaram e passam, e que estavam lá, festejando, cantando e dançando a sua cultura.
Imaginei a felicidade dos mais velhos ao ver as crianças participando, reproduzindo o que lhes foi ensinado, mostrando que estão vivos, e que podem continuar.
Aquele coro falou muito para mim.
Depois se espalhavam, e voltavam aos seus “postos”.
Defumaram o altar com a fumaça dos cachimbos, dançaram circulando o altar, ao som do mbaraca e da rabeca, de vez em quando um tambor, de vez em quando um tronco de madeira que batia no chão, marcando. Juntavam em coro novamente para cantar e dançar.
Quando pensei que não, já estavam em fila para o batismo. Uma mulher passava avisando que quem havia sido batizado por um tal homem que tinha morrido, precisaria se batizar de novo.
E eu lá. Sem saber o que aconteceria depois. Mas com vontade de participar, havia gente branca que já tinha se batizado. Como saberia o momento de participar?
Homens. Depois mulheres. Água da mão do avô em suas cabeças, e então, seus novos nomes. Para alguns o primeiro.
O nome vem do deus que o fortalece, é o nome que regerá sua vida. Esse é um momento muito importante.
Então, eis que a Rose vem falar com a Fábia, e eu sabia que ela estava chamando para ir para a fila. Senti que poderia ir também. Fomos.
Quando recebi a água, não entendi o que havia sido dito. Mas eu estava feliz.
Respeito por aquele homem, pelo que ele representa, e pelo povo daquela aldeia.
Depois descobri que tínhamos ido na hora ‘errada’. Fomos na hora que era apenas para quem é da aldeia. Mas o Sr. Fernandes nos tratou como se fossemos, então entendi que somos parte., que fomos aceitos, que somos bem-vindos.
Depois foi a hora de ir certo, para receber o nome: Ara.
Ara eu confirmei. Ara Miri. Céu Pequeno.
Depois descobri que Ara foi esposa do sol. Esse é meu nome guarni.
Tanta coisa já se passou na minha cabeça depois disso…O que significa, para eles, a gente ter se batizado?
Para mim, aumenta a responsabilidade. E claro, me sinto mais próxima, sinto vontade de conhecer mais ainda sobre essa cultura, sobre a minha cultura.[/accordion]
[accordion title=”Ensaio | 01 de fevereiro de 2012 História sobre o povo da Terra” load=”hide”]

No começo do mundo em que eu vivo, habitava a Terra um povo que de tudo sabia. Era preciso um dia para observação, no outro seguinte, já haviam aprendido tudo o que havia sido observado.
Poliglotas, falavam a língua dos ventos, a língua das plantas, a língua das águas, a língua de cada espécie de animal que vivia junto deles, a língua dos deuses, além da sua própria língua de origem. Por conta disso, sabiam tudo o que era necessário fazer.
Viviam felizes. Todas as tardes se juntavam para cantar e dançar. Todos entravam na roda, das crianças aos adultos, dos animais que rastejavam aos que voavam.
Num dia desses em que estavam reunidos, sentiram a terra tremer, e não era pela dança dos pés batendo no chão.
Saía de dentro do chão um ser que eles nunca haviam visto, todo vestido de fogo. Sua grande língua de fogo soltava palavras que eles não entendiam. Os filhos da Terra pararam para observar. Mas foram surpreendidos por dragões cuspindo em suas casas. Sem tempo para entender o que estava acontecendo, homens e mulheres corriam amedrontados.
E nunca acabavam de sair mais e mais desses seres estranhos, com armas de fogo, atacando a todos, destruindo o que viam pela frente.
Muitos acreditavam que era o fim desse mundo, mas não foi.
Muitos dos filhos da Terra foram esmagados, engolidos pelos dragões, outros desapareceram mata a dentro, e nunca mais foram vistos.
Os mais velhos pegaram suas crianças e tentaram se esconder, então, começaram a falar com os deuses, pedindo que os ajudassem a combater aquelas chamas. Voltaram a bater com seus pés na Terra-mãe, e nesse momento começou a cair do céu uma chuva, que foi engrossando para conter o fogaréu. Os filhos da Terra dançando, foram tomando a cor da chuva, transparentes para sumirem das vistas daqueles que os desejavam mal.
Foi então, que os filhos da Terra ficaram invisíveis aos olhos de quem tem ódio.
Agradecidos pela chuva que apagara o fogo, o povo invisível foi procurar onde morar. Ainda tinham medo, como eles não tinham ódio em seus olhos, ainda se viam, e nunca souberam que estavam transparentes.
Buscaram por um lugar distante daquele, e bem escondido. Andaram dias e dias, quando avistaram uma grande montanha, decidiram atravessá-la. Atrás da montanha parecia seguro. Subiram, subiram, subiram. Depois desceram, desceram, desceram, até o pé do outro lado da montanha.
Até hoje o povo invisível vive, em menor quantidade, mas, por incrível que pareça, vive.
Eles gostam quando chove, além de ser bom para tomar banho, matar a cede, e aguar as plantas, eles sabem que estão protegidos do fogo. Sentem-se mais próximos dos deuses.
Eles também sabem da nossa existência, sabem que temos fogo de nós, pois somos descendentes daqueles que vieram de dentro da terra, mas também sabem que somos seus parentes, pois nascemos da mesma Terra-mãe.
É possível conhecê-los. É possível vê-los, mas para isso é preciso ter olhos sem ódio. E subir a montanha, depois, descer a montanha.
E não é fácil, para conseguir subir, é preciso deixar muita coisa para trás, é desejável que deixe seus pertences e suba, vazio.
Lá nos recebem cantando, e antes de adentrarmos suas casas, o avô despeja água em nossas cabeças, para controlar o fogo que há em cada um de nós.
Quem chega até lá consegue enxergá-los, e eles tem a cor de filhos-da-Terra.
Essa é a história do povo que deu origem ao mundo em que vivo. Essa é a história do povo da Terra.[/accordion]
[/accordions][/tab]
[tab title=”Roseli Garcia”][accordions]
[accordion title=”Ensaio | 05 de Dezembro de 201″ load=”hide”]
compoema_arapyau_roseli_depoimento
Ensaio | 05 de Dezembro de 201

A palavra, a imagem, imaginação.
Imagem em ação.
Harmonia.

É a estranha sensação de pertencimento, isto mesmo, de compartilhar ideias, de concordar com um modo de vida que respeita a natureza e mais que isto, que a valoriza com seu semelhante, que não se sente superior a qualquer outro ser, principalmente se esse ser for da sua espécie.

É doloroso, uma desconfortante sensação, saber que faço parte de uma “espécie” denominada por eles “jurua”, que através do desrespeito, da prepotência e, principalmente da “burrice” se acham superiores a qualquer ser, com suas máquinas e infindáveis conhecimentos científicos, não sabem sequer o mais elementar de todos os aprendizados, dividir o pão e não esgotar sua fonte.

É “juruas”, que perdem tempo para inventar o que a natureza já te dá. E para que seu invento funcione sem concorrência é preciso eliminar o concorrente. Pensamento branco! Capitalista! Egoísta!

Como diz o ditado “Mente vazia, oficina do diabo”. E como ele não gosta de tudo muito fácil, botou aqui na terra os “juruas”, pra conviverem com os indígenas e fazer melhor que ele mesmo, seu próprio trabalho.

Frases/palavras que ficaram:
A gente precisa de livro didático pra aprender. A natureza é livro didático.
A gente não usa garfo, não usa faca, mas a gente come.
Main, pequeno, Verá, Kirexu, morreu.

Imagens:
Pássaro livre, voando. Crianças brincando. Criança no colo. Criança comendo salgadinho do chão. Criança brincando com cachorro. Fechar-se. Acabar. Findar.[/accordion]
[/accordions][/tab]
[/tabs]